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'Sou sobrevivente da cura gay', conta psicólogo, que passou por autoflagelo, jejum e exorcismo; parlamentares querem criminalizar prática

Homossexuais que passaram por processos de conversão, sem base científica, revelam experiências traumáticas em igrejas e consultórios

Agência O Globo - 29/10/2023
'Sou sobrevivente da cura gay', conta psicólogo, que passou por autoflagelo, jejum e exorcismo; parlamentares querem criminalizar prática

O psicólogo Héder Bello, de 37 anos, passou boa parte de sua juventude tentando deixar de ser quem é. Durante 13 anos, fez sacrifícios diversos para “abandonar” sua homossexualidade. Seguindo um roteiro conhecido por muitos da comunidade LGBTQIA+, entrou para um ministério da igreja evangélica que promovia retiros espirituais com dias de silêncio e pregava a renúncia aos pecados. Foi obrigado a jejuar e a cumprir práticas de autoflagelo, como se ajoelhar sobre objetos cortantes.

— Uma vez fiquei três dias sem comer e desmaiei. Em vez de me socorrerem, acharam que era uma manifestação demoníaca e fui submetido a exorcismo — lembrou Bello, que hoje se auto intitula um sobrevivente da “cura gay”.

Natural de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, Bello foi orientado a se mudar para Niterói e a viver numa casa da igreja onde passaria por um processo de “reorientação sexual”. Um tipo de “cárcere”, em suas palavras. Cada passo dele era vigiado, e sequer era autorizado a sair para ver os pais, considerados “culpados” pelo seu comportamento. Assim, passou seis anos de sua vida.

Como a conversão não foi positiva, a igreja encaminhou Bello a um psicólogo, indicado por eles e “alinhado” para evitar “uma cilada do diabo”. A tal psicóloga, mais tarde, viria a ter seu registro suspenso pelo Conselho Federal de Psicologia. Bello ouviu dela que, em seu caso, uma das opções era eletrochoque.

Durante a última semana, o GLOBO ouviu relatos de integrantes da comunidade LGBTQIA+, além de especialistas em “reorientação da sexualidade”, sobre a prática proibida no Brasil, mas ainda comum em ambiente religioso e até em consultórios de psicologia.

Neste mês, a influenciadora de direita Karol Eller, de 36 anos, tirou a própria vida pouco depois de passar por um retiro espiritual, no interior de Goiás, e publicar em suas redes sociais que iria deixar de ser lésbica: “renunciei à prática homossexual, vícios e desejos da minha carne para viver em Cristo!”, escreveu. Antes de morrer, outra mensagem: “perdi a guerra”.

Pensamentos suicidas e tentativas de tirar a vida não são incomuns entre aqueles submetidos a violências psicológicas e físicas por sua sexualidade. Depois de deixar a igreja e assumir sua existência, Bello se formou em psicologia, virou pesquisador na Universidade Federal do Rio de Janeiro e se dedicou a ouvir sobreviventes da “cura gay”, cujos depoimentos foram reunidos em livro lançado pelo Conselho Federal de Psicologia. Ele conta que retiros religiosos como o que Karol Eller frequentou são bastante disseminados no Brasil, e foram inspirados num modelo nascido na Colômbia, conhecido como Encontro com Deus, popular nas igrejas evangélicas a partir dos anos 2000.

— A busca pela cura gay não é voluntária. Passamos a vida por um processo maniqueísta e manipulador que diz que isso é errado, pecado, doença, desvio, problema, maldição. As pessoas não querem deixar a homossexualidade, mas sim o peso do que o fundamentalismo religioso diz que ser gay é — afirmou Bello.

Os deputados federais do PSOL Erika Hilton (SP), Pastor Henrique Vieira (RJ) e Luciene Cavalcante (SP) acionaram o Ministério Público Federal (MPF) pedindo uma investigação da igreja em Goiás onde Karol Eller supostamente passou por um retiro de “cura gay”.

— A chamada cura gay é uma violência sem base científica e que promove uma espécie de tortura psíquica. Dentro da concepção fundamentalista, a condição leva à condenação eterna, abominação, ao inferno. Imagina a pessoa viver lutando contra o que ela é. É profundamente adoecedor. Não podemos normalizar isso — afirmou o deputado e pastor Henrique Vieira, que avalia outros meios legislativos de ampliar o debate.

Ele está em contato com a deputada Luizianne Lins (PT-CE), presidente da Comissão de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial da Câmara dos Deputados, para criar um grupo de trabalho e entregar um relatório sobre o tema no dia 10 de dezembro, Dia Internacional dos Direitos Humanos.

No último dia 19, a deputada federal Erika Hilton apresentou um projeto de lei para equiparar processos de conversão sexual a tortura, que passaria a ser considerado crime inafiançável com pena de dois a oito anos de reclusão.

Arquivo pessoal

Cura começa na família

No final dos anos 1980, no lar evangélico de Raquel e Samuel Savickas, o casal era orientado por pastores a proibir os filhos de ver televisão, ter contato com religiões de matriz africana e até de participar de festas como Cosme e Damião, junina ou halloween. Raquel repetiu incontáveis vezes que os filhos pertenciam ao “Senhor Jesus” para livrá-los da homossexualidade. Em retiros, confessou pecados de quatro gerações da família que tiveram “vida libertina”. Dois de seus três filhos são homossexuais: Samuel, de 44 anos, e Silas, de 33 anos. O mais velho foi o que mais sofreu porque, na percepção dos pais, tinha trejeitos afeminados e passou parte da infância ouvindo sobre sua “doença”. A mãe pagou em dólar um retiro espiritual para ele em Londrina, promovido por uma igreja estrangeira.

— Ele ficou dez dias, o que eu consegui pagar. Nosso filho ficou num quartinho por uma semana, passando por um processo de cura em que eles ungiram suas partes íntimas com óleo. Até hoje, ele não fala muito sobre isso. Ele não se suicidou pela graça e misericórdia de Deus — conta Raquel.

Ao completar 20 anos, o filho seguiu por conta própria um caminho de acordo com suas escolhas, o que tornou os pais ainda mais radicais, adeptos públicos da tese de que homossexuais tinham que ir para o inferno. Savickas hoje diz que a igreja “infiltra os textos bíblicos na mente dos fiéis”.

— Hoje sabemos que a homossexualidade é da natureza humana — diz ele, que atribui o comportamento a uma espécie de “transe religioso”, do qual conseguiram acordar, como se voltassem de um pesadelo. — Fui salvo da homofobia.

O casal não só passou a aceitar os filhos, que têm relacionamentos estáveis com seus companheiros, como frequentam uma igreja cujo pastor é gay e viveu um drama semelhante.

O psicólogo Josué de Castro Filho, doutor em ciências pela Universidade de São Paulo, debruçou-se em suas pesquisas na prática ofertada pelas igrejas. Em seu mestrado, estudou homossexuais que abandonaram as igrejas por conta da rejeição. No doutorado, investigou os que decidiram ficar. Segundo Filho, pouquíssimos dos que permanecem mantêm o discurso “perigoso” de que Deus fez um milagre em suas vidas e, por isso, não sentem mais atração homoerótica. A renúncia da sexualidade ainda é um grande sacrifício.

— Elas têm de lutar contra os próprios desejos, se afastar de qualquer estímulo, fator, ambiente, comunidade que têm a ver com a homossexualidade — explicou Filho. — Algumas dessas pessoas estavam com a saúde mental bem prejudicada, sofrendo isolamento, tristeza, ansiedade e depressão.

O antropólogo Juliano Spyer, fundador do Observatório Evangélico, ressalta que a condenação da homossexualidade não é exclusiva da igreja evangélica. Os religiosos fundamentalistas, segundo ele, usam trechos bíblicos específicos para disseminar preconceito. Ele observa que as igrejas evangélicas, inclusive, são plurais, indo de um espectro mais conservador até o progressista:

— Quando falamos no protestantismo, que são milhares de igrejas, a lógica é: “não gostou, abre outra”. Em algumas igrejas, a proibição é mais velada. O gay pode ir, mas não pode chegar de mãos dadas com o companheiro. Outras, por sua vez, são inclusivas.

Registros de psicólogos cassados

A Organização Mundial de Saúde (OMS) não considera a homossexualidade como uma patologia desde 1990, época em que o comportamento homossexual foi retirado da Classificação Internacional de Doenças (CID), onde constava na categoria de desvios e transtornos sexuais. A importante mudança foi fruto da luta de movimentos civis pela diversidade e do estabelecimento de critérios mais robustos para a classificação doenças de ordem psicológica.

No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia determinou em 1999 que é proibido a qualquer profissional da área realizar terapias de reversão sexual, uma vez que homossexualidade não é uma doença. Considerando os últimos cinco anos, o órgão encaminhou à segunda instancia de julgamento sete casos de denúncias por “cura gay”. Os registros derivaram, até agora, para quatro cassações do registro profissional, duas advertências e uma suspensão temporária de 30 dias. O conselho ainda diz que também julga recursos de quatro casos de “ indução a convicções de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito” ocorridos no mesmo período.