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Pretinho da Serrinha: 'Tenho raiz, história, ancestralidade, não caí do pé de uma árvore'

Parceiro de Seu Jorge, Xande de Pilares, Caetano e Marisa Monte conta como une mundos da MPB e do samba e revê sua carreira: "Vim da Serrinha, me adapto desde que nasci"

Agência O Globo - 25/09/2023
Pretinho da Serrinha: 'Tenho raiz, história, ancestralidade, não caí do pé de uma árvore'

O nome de batismo de Pretinho da Serrinha sequer saiu da maternidade. A manicure e porta-bandeira Maria de Fátima tinha acabado de varar a madrugada parindo o filho, Angelo Simplício da Silva, quando a família invadiu o hospital, virada de um baile em Rocha Miranda, na Zona Norte carioca. Olharam a cara do neném e começaram a cantar o hit de Ben Jor que diz: “A banda do Zé Pretinho chegou”. Nascia ali Zé Pretinho que, com o tempo, deixou de lado o Zé e passou a carregar a alcunha de sua favela de origem.

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A história ilustra bem como a vida do instrumentista, compositor e produtor foi, desde o início, regida pela música. No lugar de futebol e pipa, diversões dos outros meninos do morro, ele só queria saber de tocar. E foi o que fez. Com Deus e todo mundo, do samba e da MPB, e assim se tornou elo entre esses dois mundos.

A prova mais recente é o disco em que Xande de Pilares canta Caetano Veloso, do qual assina a produção. O mesmo crédito tem no álbum “Negra ópera”, de Martinho da Vila, indicado ao Grammy Latino - esta e a quarta indicação de Pretinho, que levou um troféu com disco de Maria Rita.

Como compositor, sua caneta está em sucessos como “Mina do condomínio” e "Felicidade", hits de Seu Jorge, e “Feliz alegre e forte”, com Marisa Monte — com quem viaja em turnê e para quem “Pretinho é compositor e músico fenomenal, um cara inspirador, que reboca muita gente no rastro de seu talento”.

Tão inspirador que foi graças à provocação dele, ao cobrar um batuque no disco de Caetano, que o baiano compôs “Sem samba não dá”. Na opinião do cantor, que conta com o instrumentista na banda de seu show “Meu coco”, “nascido da aparentemente fatal desordem brasileira, Pretinho é um exemplo de dedicação e concentração no trato do próprio (imenso) talento”.

Prestes a estrear uma roda de samba no Jockey, em novembro, o músico de 45 anos falou sobre vocação, representatividade e do trauma que tem de uma “saideira”.

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O que te fez se tornar essa ponte fundamental entre a MPB e o samba?

Virei diretor de bateria de escola de samba com 10 anos de idade. Aprendi a lidar com muita gente, argumentar, arregimentar, fazer política. Isso me facilitou. Sou um bom técnico. Sei quem chamar para determinado trabalho, pensar no bandolim do Hamilton de Holanda com a voz do Xande de Pilares, por exemplo. Aprendi a formar time, gosto de juntar galera, conversar e ouvir. Sempre fui chegando devagarinho.

Tocando com Dudu Nobre, conheci Seu Jorge e Marcelo D2, que apresentei para o Arlindo Cruz. O dois viraram compadres. Sempre pensei que sozinho era mais difícil. Com a galera, o caminho é mais fácil. Então, por que ficaria tocando ali na Zona Sul sozinho quando comecei a ir para a causa da Paula (Lavigne)?

Fala das cantorias que fazia na casa do Caetano Veloso e da Paula Lavigne, né? Aquilo te abriu muitas portas. Paula ainda é sua empresária?

Não é mais, é minha amiga. Ela sabe que eu resolvo e sei que posso contar com ela, que chamo de "chefa". Foi Seu Jorge quem me apresentou a ela. Paula fez a direção geral e eu a musical do DVD "Música Para Churrasco ao Vivo". A gente se entendeu na hora. Temos uma coisa de confiança. Ela me apresentou um outro mundo.

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E a ideia do disco do Xande cantando Caetano surgiu dessa amizade, certo?

De um papo entre eu, ela e Xande. Caetano ia fazer 80 anos, pensávamos numa homenagem. Ela teve a ideia e falou: "Jacó, você produz?". Aceitei e depois pensei na enrascada. "O que vou fazer com as músicas do Caetano?". Tenho muito respeito pela obra dele, não dá para fazer melhor e estragar é fácil. Enrolei até que Paula ligou e falou: Você está brigado com Xande? Vou fazer com outro". Aí, não. Quem levou o Xande para a casa da Paula fui eu...

Assim como Teresa Cristina e tantos outros...

Eu ficava fazendo a cantoria lá sozinho, com Cézar Mendes no violão, Fernanda Torres no ganzá e dona Fernanda Montenegro no backing. Eu ficava cansado. Aí comecei a chamar gente para dividir comigo. Chamava o Xande e ele tinha dor de barriga de nervoso. Uma vez, ele confirmou e depois desistiu porque estava de bermuda... Até que um dia consegui levá-lo. Ele passou mal, ficou nervoso.

Mas a gente tocava no meio daquela turma: Zuenir Ventura, João Ubaldo. Quando começava a roda de conversa, eu não entendia uma vírgula, mas ficava ali ouvindo. Aprendi muito. Na hora da música, eu pensava "agora é minha vez, sei mais que todo mundo, vão ter que me ouvir" (risos).

Pretende fazer outras releituras depois do disco do Xande?

A gente pensa em talvez fazer mais algumas para o show, porque ficou um disco curto, de 34 minutos. Quem sabe depois gravamos tudo ao vivo? Mas, por ora, não tenho vontade de fazer mais. A expectativa seria muito alta. A gente acertou com o Xande, o sarrafo ficou alto. É um disco que está sendo ouvido do Leblon a Madureira. Tá tocando Caetano Veloso no Morro do Turano. Ele só chegava na favela pela novela. Nem na rádio do morro tocava.

Como esses dois mundos, o do samba e o da MPB, se retroalimentam na sua vida?

São realidades completamente diferentes. Pego as partes boas de um e de outro. Às vezes, não consigo realizar no samba o que vivo na MPB. Não tem esse negócio de viajar um dia antes pra descansar antes do show, passar som, figurino prontinho. No samba, é chegar e sair tocando.

Às vezes, nem sambista consagrado tem essa estrutura. Não sei se é porque não querem ou se estão acostumados a tratar o samba assim. Tem coisa que passa no samba e não passa na MPB. Marisa Monte jamais vai fazer um show sem passar o som. Mas a gente vai se adapatando. Vim da Serrinha, me adapto desde que nasci. Quando não está bom, eu faço ficar. Pra mim, tudo é lucro.

Acha que falta mais respeito com o samba?

Acho. Mas está mudando, tem o Zeca Pagodinho, maior sambista do Brasil que também é uma figura da publicidade, o Martinho, Jorge Aragão... Essa turma faz elevar o movimento. Mas tem uma cultura enraizada que trata o samba de qualquer jeito. A gente tem que chegar e brigar.

Você é um sambista meio fora da curva. É sério, não vara a madrugada em boteco, nem bebe...

Bebo um vinho em casa. Mas abro uma garrafa e dura três dias. Não bebo na rua. Estou sempre dirigindo e gosto de ter o meu carro, não depender de ninguém. Dá a hora e eu quero ir embora, pronto. Não quero ficar com medo de Lei Seca.

Mas também tem uma memória afetiva negativa que vem da família...?

Tem. Tenho trauma de bebida, de droga. Minha mãe era vida louca. Bebia, fumava, cheirava. Eu não aguento esse negócio de "saideira". Lembro de estar sentado numa mesa de bar com sono, uma da manhã e falar "bora, mãe". E ela: "Peraí, a saideira". Eu enchia os copos para aquilo acabar logo, mas eles pediam outra. Era vencido pelo cansaço e caía deitado nas cadeiras que minha mãe juntava.

Eu acordava na casa de alguém que nem sabia quem era. Ia andando pela casa até achar minha mãe no meio da galera. Às vezes, nem achava, ela tinha ido para outro lugar e me buscaria no dia seguinte. Minha mãe saía para o samba e deixava eu e meu irmão trancados. Ele chorava, eu ficava nervoso e gritava. Meu tio, que morava no quintal de baixo, vinha arrombar a janela para tirar a gente.

Isso te afastou totalmente das noitadas...

Totalmente. Nunca cheguei perto de cocaína. Minha mãe, daquele jeito meio errado dela, tinha a psicologia de não esconder nada. Dizia, olhando no nosso olho: "Cheiro, fumo e bebo". Se fizerem isso, meto a porrada". E ninguém foi nessa...

Caetano transformou uma provocação sua, que cobrou um samba no disco "Meu coco", na canção "Sem samba não dá". Aí você sambou com ele no clipe e, depois, no show. Também samba com Marisa no palco. Virou quase um Carlinhos de Jesus...

Sou um sambista nato, mas nunca fui de sambar. Não gosto. Não sou um sem ritmo, mas também não sou um Bira Presidente, com aquela malandragem (risos). Meu negócio é tocar. Não sei jogar bola, só toquei a vida inteira. Fiz um samba com a Marisa, "Elegante amanhecer". Aí, quando a Paula me viu sambando no palco com Marisa, falou: "Tá sambando lá, vai ter que sambar aqui também". Já são dois anos sambando. Fico nervoso, mas depois gosto.

Como é olhar em volta e se dar conta que está tocando com Caetano, Marisa...

Isso vem desde Lulu Santos. Tocar com ele as músicas que ouvi no rádio... Eu tinha acabado de sair do Seu Jorge, estava há três dias desempregado, e a produtora do Lulu me liga perguntando se podia ir no estúdio. Tinha tocado um pandeiro com ele no Prêmio da Música Brasileira e ele não esqueceu mais.

Fui tocar cuíca com ele no Rock in Rio de braço quebrado, ele me apresentando pelo nome. Um cara do Morro da Serrinha tocando cuíca com Lulu Santos no Rock in Rio... Doideira! Ali, eu falei: "Olha onde cheguei".

Na hora que Caetano canta "Ciclâmen do Líbano", eu não toco. E fico debruçado nas congas olhando para ele. A cabeça dá um giro, penso na Serrinha, nas cantorias, no sacrifício que fiz, na minha família... E no que esse cara ja fez, viveu, compôs... E eu ali, de braço esquerdo dele. É um privilégio. E honro. Tomo conta para ele não esbarrar em caixa de som, assumo a posição de guardião.

Com Marisa vejo aquelas projeções, vestidos... Não vou dizer que acostumei. Convivo, mas é esquisito.

Você nunca fica só de músico, né? É de dar opinião, se meter.

Não que não goste de receber ordem, não gosto é de ver coisas paradas. Chego num lugar e sinto o clima. Começo pelo mais velho, porque tem hierarquia. Se vejo que está todo mundo naquele de "fazer o meu e pegar meu dinheiro"... Isso não funciona comigo. Tem gente que tem medo do artista. Eu nunca tive. É só respeitar.

O artista é meu amigo fora dali. No palco, é meu patrão. "Ah, o Lulu vai dar um ataque". Nunca deu comigo. É amigo de comer feijoada junto, de levar para casa a panela com sobra da sopa de ervilha que levei para o ensaio. Mas não dá para chegar na intimidade. Tem que saber o espaço.

Chego e falo: "Professor, não acha bom colocar um tamborzinho aqui?". Vou trazendo meus negocinhos, colocando um tamborim, uma cuíca. As pessoas compram, porque também querem isso.

Às vezes, fazem um negócio em volta do artista... Ele precisa dessa preocupação na hora de ir para um hotel. Na música, é todo mundo igual.

Já vi muito músico chegar perto do Lulu, da Bethânia, cheio de medo. Eu não tenho essa parada. Vai gostar de mim do jeito que sou. Se eu der uma opinião com a maior boa vontade e for maltrado, vou embora e não volto mais.

É essa verve de líder que veio desde quando se tornou mestre de bateria, aos 10 anos... Como foi esse momento?

Eu andava no meio dos velhos, não queria escola de samba mirim. Mas ia ter uma viagem de avião. Não conhecia nem o Centro da Cidade, só Madureira. Falei: "Avião"? Vambora!". Fiz o teste e passei. Em três dias estavam me chamando de líder. Porque já comecei a mandar, organizar. Era o mais novo e voltei diretor de bateria. Em todo lugar que chego é assim. Com Seu Jorge, também era o mais novo da banda e o diretor musical.

Seu Jorge acabou virando um grande parceiro seu. Fizeram "Mina do condomínio", "Felicidade" e outras. Como começou essa dobradinha?

Depois de um show do Dudu Nobre, ele foi no camarim elogiar a banda. Pediu meu telefone e eu não tinha. Respondi: "Tem um orelhão lá no morro". Era na associação de moradores, lá embaixo, e eu morava lá em cima.

Pelo megafone, faziam os anúncios. Às vezes, eu escutava, às vezes não. Dependia do vento. Se ventava para Madureira, chegava lá em casa. Se para Vaz Lobo, não. Aí foi aquele telefone sem fio: "Chamaram Pretinho". Desci correndo e caiu a ligação. Perguntei quem era: "Um tal de senhor Jorge", responderam.

Aí, fiquei plantado ao lado do telefone para não deixar ninguém pegar. Era cascudo, cria do morro... Aí tocou de novo. Era Seu Jorge me chamando para gravar. Perguntei onde, e ele: "Lá na casa do caralho". Respondi: "Qual é, irmão? Me conheceu agora, que intimidade é essa?". E ele: "Não, bicho, é o nome do estúdio do Marcelo D2".

Sua primeira vez na Zona Sul...

Nem sabia chegar. Enchi meu golzinho verde 1988, com adesivo dos Racionais no capô, e fui para Laranjeiras. Não tinha GPS, fui perguntando. Cheguei no estúdio e Seu Jorge disse que tinha um samba do Luiz Carlos da Vila para gravar, mas que não tinha nada pronto. Falou: "Vou ali fazer uma foto e volto". E eu: "Mas e o tom?".

Ele desceu numa scooterzinha, era todo mundo duro naquela época, e só voltou 10 da noite. Eu estava com a base pronta. Fui no dó maior. Depois, descobri que ele canta em qualquer tom. Ele chegou, ouviu e disse: "Peraí". Pensei: "Ih, não gostou". Mas entrou logo para gravar e falou: "Pode voltar amanhã?". Gravei todo o disco "Samba esporte fino". Aquela cuíca... Dali, a gente fez o "Cru", com aquele cavaquinho de "Tive razão", que todo mundo conhece.

Você é a prova de que o samba salva vidas. A música era uma certeza que tinha desde que brigava com os mais velhos para poder pegar um instrumento e tocar?

Eu tocava na roda do Botequim do Império e ficava tentando tocar no samba do bloco Pena Vermelha. No bloco, eu não podia pegar instrumento porque eu era moleque. Quando metia a mão, vinha um cara e mandava "arreia a peça, menor". Eu chorava, queria brigar. Era baixinho, chutava canela.

Não sei se tinha certeza, mas era o que tinha para fazer, o caminho mais perto. Pelo dom, estrela, vocação, sei lá. Não estudei nada ali, ninguém pegou na minha mão, eu saía tocando. A disputa no morro entre a coisa boa e a coisa ruim é desproporcional. O mal está mais alto, com dinheiro, moto, poder, tênis, cordão de ouro, namoradas. Eu tinha que sair à noite com meu instrumento embaixo do braço, descer o morro inteiro para pegar o ônibus.

E passava sufoco. De chegarem de madrugada e falarem: "Ô irmão, o bumbo pagou a passagem?". Era um surdo grande, não dava para colocar no corredor. Eu apoiava na cadeira. Aí, o cara: "Deixa ele sentado, então, e levanta você".

Eu moleque, ficava ali, quietinho. Já sabia que não seria advogado, engenheiro, nunca fui bom de matemática... Química, pior ainda. Sabia que meu negócio era aquele e fui. Tinha muita vontade, gostava muito.

Sua mãe te deu o primeiro repique de mão e seu padrasto fazia vaquinha para aulas de cavaquinho. E seu pai?

Meu pai tocava na roda de samba, mas não foi importante para mim nessa história. Ele tocava no Botequim do Império, me botava para tocar com 8 anos de idade, mas me tratava como criança. Tinha cachê para mim, mas ele não me dava. Eu era músico já, pô.

Para tocar, eu tinha que passar por baixo da roleta do ônibus, todo arrumadinho, não podia encostar a bunda no chão para não sujar a bermuda.

Meu pai não me incentivou, não foi um cara bacana. Não tenho problema com ele não, não tem como voltar atrás. Mas não tem aquele amor, né? É mais um colega que respeito. E ajudo, porque está com dificuldade.

Minha mãe foi importante, com toda a loucura dela. Antes de morrer, ainda me viu dando uns frutos.

Representatividade é uma questão que te move? Você africanizou a concepção musical do último Prêmio da Música Brasileira, em que fez a direção musical da homenagem a Alcione. Aquilo foi uma forte afirmação de negritude.

Eu sou do tambor, eu tenho raiz, história, ancestralidade. Não caí de uma árvore, de um pé de pretinho. Não fiz santo, mas fui criado dentro da macumba, do candomblé. Meu pai é ogã. No morro, saía uma caixa de som da igreja de um lado, a macumba, o samba e o jongo do outro. Minha mãe era filha de santo. Meu avô foi o maior tocador de candongueiro, um tipo de tambor do jongo. Tocou com Vovó Maria Joana.

Carrego um negócio. Não sou maestro, sou ritmista. Toquei em uns 13 Prêmios da Música. Então, para homenagear Alcione, uma mulher preta, enchi de tambor. Muita gente me disse que se sentiu representado pela sonoridade. Quando vi os velhinhos do Fundo de Quintal na plateia, veio uma coisa de estar orgulhando eles.

E tem as crianças que são meus fãs, tenho uma responsabilidade. Estou ajudando o Miguelzinho do Cavaco, menino talentosíssimo, mas a família não sabe nada de música.

Carrego o nome da Serrinha. Não tinha ninguém da Serrinha antes de mim. Dona Ivone era Lara, Silas, de Oliveira, Jorginho, do Império... Depois de mim, tem Tiaguinho da Serrinha, Negão da Serrinha, Wilson Pereira da Serrinha... Virou uma grife. Antes, quando a Serrinha aparecia na TV, era problema, operação (da polícia)... Agora, tem um monte de músico, artista... Tem gente que me olha e fala: "Pô, o pretinho chegou lá. Se ele chegou também vou chegar".

Outro dia, uma percussionista fez um vídeo copiando um negócio igual ao que gravei no disco do Xande. Fiquei emocionado, pensei: "Ainda sirvo de exemplo para alguém". Porque a percussão está muito mudada pelos jovens. Sou velho, toco meu jeito e ainda tem alguém achando legal. Fui entendendo que eu sou importante.

Meu irmão fala pra mim: "Zé, você não pode vacilar aí pela rua, não". Virou uma responsabilidade mais pesada do que subir no palco e tocar (risos).

Falando em nome... A origem do seu apelido mostra bem como a música rege sua vida desde o início. Pode contar mais detalhes desse momento?

Deixaram minha mãe na maternidade. Naquela época, não tinha esse negócio de pai ficar para filmar o parto, nada disso. Largavam a mãe no hospital à noite para ver que horas ia nascer. Em vez de esperarem no hospital, eles foram para um baile em Rocha Miranda. Minha tia, minhas primas e meu pai. E minha mãe se fodendo sozinha na maternidade...

Nasci 4 da manhã. E eles chegaram doidões, de ressaca. Minha prima me viu e já entrou cantando: "A banda do Zé Pretinho chegou". Virei Zé Pretinho. O nome que minha madrinha me deu Angelo Simplício da Silva, morreu.

Com o tempo, fui tirando o Zé e ficou Pretinho. Dudu Nobre começou a me chamar de Pretinho da Serrinha. Porque era todo mundo preto na banda dela, então, tinha que diferenciar. Aí, pegou.

Na hora da composição, sua inspiração vem mais do inconsciente ou do trabalho árduo?

É um processo sério, tipo escritório mesmo. Sento para trabalhar, compor. Sempre à noite. Às vezes, vem do nada também. Leio partitura, mas não escrevo arranjo, nada. Gravo tudo. Quando não tem instrumento, gravo a a voz. "Aliança", música com Pedro Baby, Carlinhos Brown e Marisa monte veio na van, a gente indo do Porto para Lisboa. Pedro tocava uma melodia para a avó dele, que tinha morrido. Ouvi aquilo e saí escrevendo a letra. Ele diz que recebi um Chico Xavier (risos). Nunca tinha feito isso.

"Feliz, alegre e forte" veio quando a Raquell (Luz, cantora), minha mulher, ia fazer uma cirurgia e a Marisa ligou. Ela sempre ligava semanalmente por duas horas na pandemia. Para não deixar ninguém cair. Ela contou a história do avô de uma amiga, que veio fugido no nazismo e escreveu no muro do quintal "sou feliz alegre e forte, tenho amor e muita sorte". Aquilo tinha virado um mantra para ela e disse para a gente anotar para a gente também. Raquell anotou.

Fiquei ali, olhando para aquele post-it. Quando Marisa desligou, peguei o ukulele, comecei a tirar acordes, e a Raquell começou a tirar a letra. Liguei para a Marisa com a música. Ela já botou do jeito dela, trocou palavras e mandou um áudio de volta. É sempre uma história assim. É sorte? Não, é muito trabalho. Estou com 45 anos e faço isso desde os 7. Tem luz, tem axé, mas nunca foi sorte.

O samba vive novamente um bom momento, com rodas pipocando praticamente todos os dias da semana. É como dizia Nelson Sargento, o samba agoniza mas não morre?

Tem a força natural do samba, o ritmo mais popular do Brasil, mas tem outra coisa: antigamente, só era sucesso o que tocava na rádio. Ou você era famoso porque tocava na rádio ou não era nada porque ficava só na favela. Hoje não é mais assim.

Samba é rua, é povo. E quem diz o que é bom agora é o povo. Você passa na Praça Tiradentes (Centro do Rio) e tem 10 mil pessoas; Moacyr Luz bota 3 mil no Renascença. E o movimento vai se multiplicando porque muitos músicos que tocam em determinada roda, fazem a sua própria roda em outro dia. E assim vai. A força natural do samba é a do movimento. E está grande.

Você só foi lançar um disco seu com 30 anos de carreira. Por que demorou tanto? Pretende gravar outro?

Uma hora tem que fazer o seu, né? Fiz para todo mundo... Uma hora vou ter que cortar o cordão, focar em mim. Toco com artistas que estão quase querendo encerrar. Caetano está cansado. Marisa até continuará, mas artista troca de banda. Preciso pensar em mim.

Demorou para lançar meu disco porque eu achava que nunca estava bom, me cobrava muito. Era eu cantando, nunca fui cantor. Até que um dia o Prateado, produtor, falou: "É um disco do Pretinho e não do Pavarotti". Aí, lancei.

E logo veio a cobrança para lançar outro. Pô, gastei R$100 mil pra fazer o disco, orquestra, cordas. Aí, ouvem um dia, um mês e passou. Música está ficando descartável, e isso me dá preguiça. Mas tenho vontade de fazer outro, até para sustentar o nome. É preciso evoluir, não dá para ficar vivendo da mesma história.

Falta tocar com alguém?

Talvez, fazer uma turnê com Djavan, que admiro muito. Também queria tocar com o Stevie Wonder, uma musiquinha só, um solo de cuíca ou tamborim (risos).