Internacional

Inundações na Líbia mostram como mudança climática somada à crise política e econômica potencializa tragédias

Divisão política, instabilidade econômica, corrupção, degradação ambiental e infraestrutura sucateada parecem ter se unido em uma catástrofe única, dizem analistas

Agência O Globo - 13/09/2023
Inundações na Líbia mostram como mudança climática somada à crise política e econômica potencializa tragédias

A tragédia na Líbia, em que o rompimento de duas represas por chuvas torrenciais deixou milhares de mortos principalmente na cidade costeira de Derna, no nordeste do país, revela como a combinação de mudança climática com conflito político e crise econômica amplifica a escala de um desastre.

Mais de 5 mil vítimas: Inundações na Líbia deixam 10 mil desaparecidos, diz Cruz Vermelha

Inundações na Líbia: Divisão do país entre governo e milícia agrava tragédia que deixou milhares de mortos

Analistas dizem que os problemas do país — divisão política, instabilidade econômica, corrupção, degradação ambiental e infraestrutura sucateada — parecem ter se unido em uma catástrofe única quando as represas, no sul de Derna, entraram em colapso.

A enorme quantidade de chuva na Líbia foi o resultado de um sistema muito forte de baixa pressão que provocou inundações catastróficas na Grécia, Turquia e Bulgária na semana passada, deixando um total de 27 mortos. Classificada pelos cientistas como um "fenômeno extremo em termos de volume de água", a tempestade Daniel deslocou-se para o Mediterrâneo antes de se transformar num ciclone tropical conhecido como Medicane (furacão do Mediterrâneo, em inglês).

Mesmo depois de a tempestade mostrar seu poder destrutivo nos três países, as autoridades líbias pareceram não ter nenhum plano para monitorar as represas, alertar os moradores ou retirá-los da região, disse Anas El Gomati, diretor do Instituto Sadeq, um centro de pesquisa de política líbia.

— Nós dizemos Mãe Natureza, mas isso é um ato do homem, é incompetência das elites políticas líbias — disse El Gomati said. — Não há palavras para descrever o nível bíblico de sofrimento pelo qual essas pessoas têm de passar.

Análise: Líbia do Leste versus Líbia do Oeste em tempos de enchente

A Líbia passou por 42 anos de governo autocrático sob o coronel Muamar Kadafi antes de ele ser destituído e morto durante um levante popular em 2011, durante a Primavera Árabe.

Durante a última década, o país se fragmentou por uma guerra civil que atraiu vários atores internacionais, incluindo os EUA.

O país se divide entre dois governos: um internacionalmente reconhecido com base em Trípoli, a capital, e apoiado pela Turquia, e outro administrado de forma separada no leste pelo Exército Nacional Líbio (ELN) e seu comandante, marechal Khalifa Haftar, um antigo líder de milícia, com o apoio da Rússia, Emirados Árabes Unidos e Egito.

A administração dupla complica os esforços de resgate e ajuda e, apesar de o país ter as maiores reservas de petróleo e gás do continente africano, sua infraestrutura foi deficientemente mantida após uma década de caos político.

— Nos últimos dez anos, a Líbia foi de uma guerra a outra, de uma crise política a outra — disse Claudia Gazzini, uma analista de Líbia no centro de estudos International Crisis Group, ao jornal americano The New York Times. — Essencialmente, isso significa que, pelos últimos dez anos, não houve muito investimento na infraestrutura do país.

O país também é especialmente vulnerável às mudanças climáticas e a tempestades severas. O aquecimento expande as águas do Mediterrâneo, aumentando os níveis de seus mares, erodindo áreas costeiras e contribuindo para enchentes, com as regiões localizadas em níveis mais baixos particularmente em risco, segundo a ONU.

Em média, tormentas com força de furacão se formam uma ou duas vezes no Mar Mediterrâneo, usualmente no outono (no Hemisfério Norte), de acordo com a Administração Atmosférica e Oceânica Nacional. À medida que as emissões de gases-estufa induzidas por humanos aquecem o planeta, tempestades de todos os tipos geralmente causam precipotações mais pesadas por uma simples razão: ar mais quente pode conter mais umidade.

A maior parte da população da Líbia vive em áreas costeiras, e o aumento dos temporais intensos pode desencadear amplos danos de infraestrutura, alertou em 2021 a Rede de Especialistas em Segurança Climática, um grupo de aconselhamento sobre riscos de segurança relacionados ao clima.

— A tempestade Daniel trouxe à luz o fato de que a Líbia é mal preparada para lidar com os esfeitos da mudança climática e com eventos de clima extremos — disse Malak Altaeb, um consultor líbio e pesquisador em política ambiental no Oriente Médio e Norte da África. — A necessidade de ação urgente para abordar esses assuntos prementes não podem mais ser subestimada.