Brasil
Em cemitérios, histórias de devoção a ‘santos milagreiros’ eleitos pelo povo
Ao contrário dos santos e beatos, com status garantido pela Igreja Católica, os chamados “milagreiros” não dependem de nenhuma autoridade religiosa
O Brasil tem um total de 37 santos e 54 beatos entre protagonistas de milagres que tornaram-se objeto de devoção e foram homologados pela igreja. Há, no entanto, um grupo de personagens que, mesmo sem a chancela oficial, também ocupam o imaginário popular por supostos prodígios celestiais. Assim, povoam necrópoles na posição de mensageiros entre as divindades e o mundo real. Nos cemitérios de São Paulo, há pelo menos 23 túmulos que atraem devotos em busca de milagres ou agradecimento pelas graças alcançadas.
Ao contrário dos santos e beatos, com status garantido pela Igreja Católica, os chamados “milagreiros” não dependem de nenhuma autoridade religiosa. Em geral pessoas com fama de vida “pura” ou caridosa, ou vítimas de violência desmedida, são consideradas divindades pela própria população. Abaixo, a história de seis deles.
Chaguinhas
Gritos de “liberdade, liberdade” ecoaram pela multidão no Largo da Forca em 20 de setembro de 1821 após a corda que enforcaria Francisco José Chagas arrebentar pela terceira vez. O soldado negro do Primeiro Batalhão de Santos foi condenado à morte por ter liderado uma revolta pelo pagamento de salário atrasados. Após três tentativas frustradas de enforcamento, Chaguinhas acabou morto e sepultado ali mesmo, no local destinado a negros e indígenas na época. Construída em 1779, a Capela dos Aflitos está instalada até hoje no bairro da Liberdade, na região central de São Paulo. Por lá, a porta de madeira da sala em que Chaguinhas ficou preso segue preservada.
O pedido de milagre segue uma liturgia específica: os devotos colocam um papel com o pedido no vão, batem três vezes na porta e depois acendem uma vela. Na capela, existem quadros com retratos do possível rosto de Chagas. Sua história não ficou registrada em monumentos, nome de ruas ou praças. Membros da União dos Amigos da Capela dos Aflitos lutam para transformar o culto a Chaguinhas em Patrimônio Imaterial da cidade de São Paulo. Integrante da entidade, a aposentada Maria dos Reis ouviu incontáveis histórias de pessoas que tiveram respostas positivas a pedidos feitos ao mártir.
— Na última Páscoa, a criança que acendeu a vela na missa foi curada com a intercessão de Chaguinhas. O menino passou meses internado com uma infecção em vários órgãos, a mãe rezava semanalmente aos pés da porta. Quando vi a criança caminhando até o altar, curada, não consegui conter o choro — finaliza ela, que costuma visitar o local.
Maria Judith
Ainda no Centro de São Paulo, a principal necrópole da capital, o Cemitério da Consolação, abriga os restos mortais de Maria Judith de Barros. Acometida por uma doença degenerativa, ela morreu em 26 de novembro de 1938 após uma das sessões de violência doméstica que seu marido a submetia. No arquivo local, não há registro do dia de seu nascimento ou foto de suas feições. Os pedidos por ali começaram logo depois do enterro. A primeira devota teria sido uma mulher que também enfrentava dificuldades no casamento. Pouco tempo após visitar o túmulo, retornou para colocar a primeira placa de agradecimento pela bênção alcançada. Anos depois, em 2001, a “milagreira” seria adotada pelos vestibulandos. Tudo começou com a exposição “História e Arte Tumular”, organizada pelo professor Délio Freire dos Santos. O projeto apresentava as esculturas nos túmulos, o que aumentou as visitas de estudantes ao cemitério.
— Os alunos começaram a pedir aprovação na faculdade. Cheguei a apresentar o túmulo para 80 estudantes em um único dia. Eles saem dizendo “a próxima placa é a minha”— explica Francivaldo Gomes, conhecido como Popó, que trabalha há 23 anos no cemitério, onde desde 2002 atua como guia.
Marquesa de Santos
Domitila de Castro do Canto e Mello, a famosa amante de Dom Pedro I, não tem tantas mensagens em seu jazigo, também na Consolação, como Maria Judith. A Marquesa de Santos é uma milagreira no cemitério do qual foi benemérita, uma vez que doou o terreno para sua construção. Domitila faleceu no dia 3 de novembro de 1867, faltando menos de dois meses para completar 70 anos, vítima de uma inflamação no sistema digestivo. Levando o título de Milagreira Protetora das Prostitutas — atende principalmente às causas relacionadas ao amor. Segundo Popó, pessoas pedem em frente ao seu túmulo relacionamentos bem-sucedidos.
Antoninho
O garoto Antoninho da Rocha Marmo é cultuado no Brasil todo, e a Igreja estuda seus possíveis milagres. O menino tinha como brincadeira favorita ministrar missas no quintal de sua casa, e segundo relatos, previu a data de sua morte, em 21 de dezembro de 1930, aos 12 anos, por tuberculose. Em outubro de 2021, seus restos mortais foram exumados e levados do Cemitério da Consolação para São José dos Campos. Segundo a Diocese de São José dos Campos, as ossadas estão na Capela de Nossa Senhora da Saúde, no hospital que leva o nome de Antoninho.
No hospital, as religiosas recebem com frequência relatos de curas por intercessão do menino. E diversas são as placas de agradecimento em seu jazigo. Essas histórias, somadas a depoimentos e provas concretas do milagre alcançado, são levados para apreciação de conselhos formados por bispos e outros religiosos no Vaticano. O processo de beatificação e canonização de Antoninho foi acolhido pela Igreja em 2007 e encontra-se em Roma, na Congregação para as Causas dos Santos. O menino recebeu o título de Servo de Deus.
Bento do Portão
O culto à memória de Bento do Portão não é reconhecido pela Igreja Católica, mas a crença de que ele intercede pelos que o invocam resistiu ao teste do tempo. Antônio Bento nasceu na Bahia, em 29 de janeiro de 1875. Em vida, já tinha fama de curandeiro. Vivia nas ruas de Santo Amaro fazendo pequenos serviços, como carregar lenha e água, em troca de comida. No dia 29 de junho de 1917, aos 42 anos, Bento foi encontrado morto próximo ao portão principal do cemitério de Santo Amaro, sem que se saiba a causa de sua morte. Por ser querido por muitas pessoas da região, estas se mobilizaram e realizaram seu sepultamento no Cemitério de Santo Amaro, na Zona Sul da capital. Três anos após sua morte, uma mulher sem identificação recorreu a Bento em oração pedindo-lhe ajuda, pois tinha sido diagnosticada com diabetes e precisaria amputar as pernas. Quando retornou ao hospital para esta cirurgia, foi informada pelos médicos que não havia mais a necessidade da intervenção.
Este é considerado um dos primeiros milagres de Bento. Visto como membro da Falange dos Pretos Velhos, fiéis se reúnem ao redor do seu túmulo às segundas-feiras para rezar. A maioria pede saúde e emprego. O memorial construído em 2002 com doações de quem se diz agraciado tem um velário e uma cobertura. Duas décadas depois de a inaugurado, o local encontra-se em processo de deterioração.
Cesinha
O Cemitério da Penha, localizado na Zona Leste de São Paulo, abriga um milagreiro conhecido por conceber graças relacionadas à saúde, especialmente de crianças. Júlio César Rodrigues, conhecido como Cesinha, nasceu em 1903 e morreu em 1908, por causa de uma meningite. Houve grande comoção social da comunidade na época. Seus devotos costumam trazer balas, chupetas, chocolates e brinquedos ao seu túmulo. Desde então, as pessoas acreditam que o garoto intercede frente aos orixás, por ser associado a Erê, entidade da Umbanda. Trabalhadores do local contam que uma senhora foi a pé do bairro de Interlagos, na Zona Sul da cidade, até a necrópole da Penha para pagar uma promessa, porque seu filho passou em um concurso público. Cesinha também costuma receber a visita de uma mulher, cuja identidade é desconhecida por todos no local. Semanalmente ela está por lá cuidando do túmulo, segundo administradores do cemitério.
*Estagiária sob supervisão de Mauricio Xavier
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