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A serial killer que nunca existiu: presa há 19 anos, Araceli Vázquez espera que Justiça mexicana reveja seu caso

História que ficou conhecida como La Mataviejitas no início dos anos 2000 inspirou o documentário 'A dama do silêncio', recém-lançado pela Netflix

Agência O Globo - 28/07/2023
A serial killer que nunca existiu: presa há 19 anos, Araceli Vázquez espera que Justiça mexicana reveja seu caso

O pesadelo de Araceli Vázquez García começou em 1º de abril de 2004, quando sua imagem invadiu as casas de milhões de mexicanos através das telas de televisão. O rosto descoberto dessa mulher de 39 anos, 1,56 metro de altura, tez morena e olhos pequenos estaria ligado a partir daquele momento ao apelido de La Mataviejitas.

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Naquele dia, as autoridades e a mídia a vincularam a uma onda de homicídios de idosos que deixou a capital do país em suspenso. A Procuradoria do Distrito Federal informou que Vázquez deixou sua impressão digital no vidro de uma cena de crime e que a família da vítima, Gloria Enedina Rizo Ramírez, 81 anos, reconheceu joias em poder da acusada — uma versão que mais tarde seria desmentida. Os registros visuais desses acontecimentos fazem parte do documentário “A dama do silêncio — O caso Mataviejitas”, produzido pela Mezcla e lançado na Netflix.

No início dos anos 2000, a Procuradoria se deparou com o maior desafio de sua história: prender aquela que, com crueldade inusitada, vinha assassinando em série mulheres entre 70 e 90 anos em suas próprias casas. Pelo menos 20 idosas foram estranguladas de 1998 até o início de 2004, aumentando a pressão da mídia e a preocupação dos moradores da capital com suas “avós”.

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Vázquez aceitou desde o primeiro dia que ela havia cometido vários roubos, mas negou ser a serial killer que procuravam. Trinta assassinatos após sua prisão — em um período de 1 ano e 10 meses — provariam que ela estava certa. Juana Barraza, então com 48 anos, foi pega em flagrante em 25 de janeiro de 2006, quando acabava de estrangular Ana María de los Reyes Alfaro, 82, em sua casa na Cidade do México. A partir dessa data, os assassinatos contra idosos cessaram.

Barraza seria condenada por 16 homicídios com o mesmo modus operandi: um deles foi justamente o de Gloria Enedina (ocorrido em outubro de 2003), ao qual Vázquez estava vinculada quando foi apresentada à mídia. Essa impressão digital encontrada no vidro, que o subprocurador Renato Sales disse pertencer a Vázquez, acabou sendo de Barraza, por isso nunca puderam acusar Vásquez desse crime. Mas há outro pelo qual cumpre pena de 23 anos e 9 meses: o de Margarita Aceves Quezada, ocorrido em 5 de janeiro de 2004.

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Mais de 17 anos depois que a Justiça encerrou o caso de La Mataviejitas, os arquivos judiciais desclassificados pela primeira vez de Juana Barraza e Araceli Vázquez revelam desleixo, manipulação e opacidade na investigação oficial, marcada por dezenas de detenções arbitrárias.

A investigação realizada para o documentário mostra que Vázquez foi responsabilizada pelo assassinato de Aceves Quezada, mas as evidências no arquivo não são conclusivas; e, de fato, o modus operandi coincide com a maneira como Barraza tirou a vida de suas vítimas, bem como a descrição física fornecida por testemunhas.

A ‘doutora’

Margarita Aceves foi estrangulada aos 75 anos com um objeto de sua própria casa, um fio de um rádio-despertador, e não houve fechaduras forçadas. Naquele dia, sua vizinha Himelda tomava banho de sol quando uma mulher vestida de médica, de aproximadamente 1,75 metro de altura, tez morena clara, cabelos loiros curtos, lisos e sobrancelhas ralas, perguntou-lhe se ela sabia de algum aposentado que morasse sozinho porque sua pensão seria aumentada em 45%.

“Respondo que sim e aponto para a janela do apartamento da minha amiga Margarita”, lê-se na pasta da investigação.

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Outra vizinha chamada Isabel encontra Himelda conversando com a "médica". De seu apartamento, as vizinhas Martha e sua filha Berenice observam a cena pela janela. Por fim, a mulher de jaleco branco pede a Margarita Aceves seu cartão de aposentadoria e ela concorda em descer e abrir a porta do prédio para que ela a leve até seu apartamento.

Ao cair da noite, os vizinhos estranharam que as janelas de Margarita estivessem abertas e sem luz no interior. O marido de Martha consegue entrar no apartamento de Margarita com um molho de chaves e a encontra sem vida. As quatro testemunhas desta história foram convocadas para depor no dia 6 de janeiro, um dia após o assassinato, e concordaram com a descrição física da suspeita.

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Três meses após o assassinato, Vázquez foi presa, então os vizinhos de Margarita foram chamados novamente para ver se a reconheciam por meio de fotografias e da câmera Gesell, uma sala com um espelho falso de onde se pode ver quem está dentro, mas não o contrário. Araceli não foi identificada como a suspeita que eles viram com a vítima.

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Uma testemunha chegou a apontar que a mulher que visitou o complexo habitacional era mais alta e Vázquez era "baixinha". Durante uma busca em sua casa em Acolman, no Estado do México, a Procuradoria Geral disse que uma bolsa contendo uma peruca e um jaleco foi encontrada lá, bem como um relógio que, de acordo com a investigação da Procuradoria, foi identificado pela sobrinha de Margarita. Esse objeto constitui a principal prova contra Vázquez, que sempre defendeu que a bolsa e vários objetos foram implantados em sua casa pelo pessoal do promotor de Homicídios, Guillermo Zayas. De fato, foi com essa peruca e janelo que ela foi apresentada na concorrida entrevista coletiva.

— Simplesmente quero que seja esclarecido que não fui eu quem matou, e as provas estão lá. Fiquei em silêncio por 18 anos! — diz Araceli Vázquez durante uma entrevista no pátio da prisão de Santa Martha na manhã de 23 de setembro de 2022. — Eu só roubei, e sempre disse isso.

Na época de sua prisão, as autoridades tentaram vinculá-la a até cinco assassinatos. Por isso, quando Juana Barraza foi presa posteriormente, Vázquez ficou feliz. As autoridades do DF proclamaram-se vitoriosas: haviam capturado a verdadeira Mataviejitas, nome cunhado pela polícia e pela imprensa que todo o México já usava. Houve cerimônias e medalhas para os heróis; e toda a atenção da mídia se voltou para ela. Tratava-se de uma mulher alta e forte que se dizia lutadora e que subia ao ringue, segundo ela, com o apelido de La Dama del Silencio (A dama do silêncio).

Para Vázquez era evidente que esta captura era a melhor prova de que ela nunca havia assassinado uma idosa, e ela pensou que a Justiça iria retificar a decisão e a faria pagar apenas pelos roubos. Mas Vázquez está no presídio Santa Martha Acatitla há 19 anos, abandonada pelas autoridades. Além disso, outra má jogada do destino a faz dividir aquela prisão com Barraza, com quem diz ter uma relação "cordial".

Esquecida e sem advogado

Hoje a mente de Vázquez está confusa. São os estragos de quase 7 mil dias de prisão. Seus olhos parecem opacos, seu cabelo ainda é curto, mas já está grisalho. Ela parece mais velha do que seus 57 anos e garante que o filho foi assassinado em um assalto, que o ex-marido reconstruiu a vida e a filha mora longe.

Diz que não teve acesso ao seu processo nem às suas sentenças, e que há anos não tem notícias do seu defensor público aposentado, que foi procurado sem sucesso; mas lembra que a sentença que recebeu foi de mais de 40 anos. Como noticiou a imprensa em 2004: quase 18 anos por roubos e 23 por homicídio. Mas Araceli garante que nem sabe o número de roubos pelos quais paga, nem o número e o nome das fatalidades que lhe são atribuídas.

As informações atualizadas obtidas de várias fontes — fornecidas após o encerramento do documentário — coincidem com o fato de Vázquez ter cinco processos criminais, um deles pelo assassinato de Margarita Aceves, e outros quatro por seis roubos, pelos quais ela ainda tem muitos anos a cumprir.

— Se houve um erro judicial, ele deve ser reparado, e isso cabe ao atual gabinete do procurador-geral e também ao Judiciário — disse o então vice-procurador-geral Renato Sales.

Hoje, Juana Barraza é uma espécie de celebridade em Santa Martha, e muitos meios de comunicação continuam a pedir-lhe entrevistas, pelas quais ela quer ser paga. Já Araceli não recebeu uma única visita em seis anos, até recentemente ninguém queria entrevistá-la, e seu maior desejo é que alguém reveja seu caso.

Esta reportagem é resultado da pesquisa para o documentário “A dama do silêncio — o caso Mataviejitas”, produzido pela Mezcla e lançado na Netflix em 27 de julho de 2023.