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Você moraria em uma casa que foi palco de um crime brutal? Valores e superstições dividem possíveis compradores e até 'turistas de homicídio'

Residências com histórias mórbidas intrigam curiosos e são ponto de interrogação para o mercado imobiliário no mundo todo; Nos EUA, pesquisa mostra que pessoas tem mais mais ex-bordéis do que locais com registro de violência no passado

Agência O Globo - 18/07/2023
Você moraria em uma casa que foi palco de um crime brutal? Valores e superstições dividem possíveis compradores e até 'turistas de homicídio'
Casa mal assombrada, no número 10.050 de Cielo Drive - Foto: Reprodução

Trent Reznor foi o último inquilino do número 10.050, Cielo Drive. Fundador da lendária banda de rock industrial Nine Inch Nails, Reznor montou seu estúdio de gravação e residência esporádica em uma luxuosa propriedade em Los Angeles, no bairro de Benedict Canyon, em 1992. Em uma entrevista de 1997, o músico reconheceu que havia chegado ao local atraído por sua lenda macabra: foi ali que, na noite de 9 de agosto de 1969, a "família" do guru Charles Manson assassinou a atriz Sharon Tate e quatro de seus hospedes, no que permanece, 54 anos depois, um dos crimes mais famosos da história da Califórnia.

"Naquela época", admitiu o músico em um bate-papo com a revista Rolling Stone, "compartilhava com grande parte dos americanos o fascínio mórbido por assassinos em série, por todo o folclore doentio que os cerca, e por Manson, que vivia dando entrevistas delirantes e gravando música de sua cela na prisão de Corcoran. Era irresistível para mim".

Reznor, apesar de tudo isso, achava chato “viver em um lugar isolado no topo de uma colina onde sujeitos de aparência muito duvidosa vinham de madrugada para fazer estranhas oferendas ou cantar músicas de Manson a plenos pulmões”. Em dezembro de 1993, um encontro casual com Debra, a irmã mais nova de Sharon Tate, o fez entender de vez que ter se mudado para aquele lugar tinha sido uma má ideia.

"Ela me perguntou se eu não estava explorando de forma sinistra e mórbida a morte de sua irmã, e eu tive que admitir que sim, foi intoleravelmente frívolo contribuir para mitificar uma parte da história americana que causou tanta dor, que as vítimas de Manson e seus familiares eram seres humanos que de forma alguma mereceram o que aconteceu com eles."

Lugares amaldiçoados

Hoje, o número 10.050 de Cielo Drive não existe mais. A mansão dos anos 1940, na qual Tate foi esfaqueada 16 vezes, foi demolida logo depois que Reznor devolveu as chaves. Os novos donos do local o substituíram por um casarão de 1.600 metros quadrados, com nove quartos e 13 banheiros. Por fim, em 2010, solicitaram a mudança de endereço para apagar, na medida do possível, os vestígios da infâmia.

Entenda: Os prós e contras de viver numa casa 'mal-assombrada' nos EUA

Como consequência disso, neste momento, entre os números 10.048 e 10.052 da Cielo Drive não está o número 10.050, mas sim o número 10.066, o último da rua. Está à venda há mais de dez anos e não parou de cair de preço desde então: R$ 97 milhões em 2019, R$ 85 milhões em janeiro de 2022 e menos de R$ 70 milhões após a mudança mais recente. A revista Architectural Digest considera que poderia ser um investimento “magnífico” se não fosse "um local amaldiçoado ao qual à lenda funesta quase ninguém quer se associar”.

De pouco adianta seu atual proprietário, o produtor Jeff Franklin, garantir que "não sobrou um tijolo, nem uma folha de grama, do ambiente em que Tate foi morta: é um lugar completamente diferente, uma mansão de luxo em um lugar de sonho”.

Alyssa Fiorentino, editora da revista americana House Beautiful, lembra que Franklin a comprou em janeiro de 2000 por um preço modesto, apenas seis milhões, e investiu uma verdadeira fortuna para transformá-la "em uma das joias da coroa imobiliária de Benedict Canyon". Talvez Franklin tenha perdido um fato: em uma pesquisa de 1997, 87% dos residentes de Los Angeles disseram que “sob nenhuma circunstância” estariam dispostos a viver em um lugar onde tal crime notório fora cometido. E os restantes 13% não têm, aparentemente, US$ 70 milhões.

Viver onde outros mataram

Em texto no The Guardian, Francisco García propõe um passeio pelas "casas do crime" do Reino Unido, ugares onde foram perpetrados "alguns dos crimes mais sombrios e macabros" da história do país. Começa em Dundee, na Escócia, onde um “assassino errante de 29 anos”, Henry Gallagher, espancou um casal octogenário até a morte na primavera de 1980. Em seguida, segue para Cranley Gardens, em Londres, casa do sinistro açougueiro Dennis Nilsson, que matou pelo menos 15 pessoas entre 1978 e 1983. E depois a pomposa residência em que lorde Lucan matou a golpes, em 1974, a jovem Sandra Rivett, babá de seus filhos.

García verificou que em muitos desses endereços de memória infeliz existem atualmente "algumas pessoas que ignoram ou fingem ignorar o que aconteceu neles". Mas também outros que minimizam o assunto, usando argumentos como o de que a probabilidade de um crime ser cometido em um local onde outro já foi cometido é "o equivalente a ganhar na loteria mais de uma vez".

Há também quem diga sentir “más vibrações” nestes locais, quem não levou o fato em conta quando se mudou para eles e os que se defendem, como os novos inquilinos da 25 Cromwell Street — em Gloucester, no País de Gales, onde morava o casal de assassinos em série, Fred e Rose West. Neste caso, o prédio original foi demolido e a residência atual tem pouco a ver com a casa em que um número desconhecido de adolescentes foram mantidos, torturados e assassinados. Apesar de tudo, segundo García, a destruição do edifício original não detém "as cerca de 100 pessoas" que todos os anos vão ao local para fazer "turismo de homicídios".

Já sabemos o que os cidadãos de Los Angeles pensavam em 1997. Mas a pergunta pertinente (e García é o primeiro a fazê-la) é se estaríamos dispostos, em determinadas circunstâncias, a morar no local onde foi cometido um crime hediondo e, ainda por cima, de grande repercussão midiática.

O consultor imobiliário americano Michael Connolly tentou quantificar essa possível rejeição. Suas conclusões são impressionantes. Entre as 13 mil pessoas questionadas por seu serviço de consultoria digital, Money Saving Expert, 78% dizem que se recusariam a comprar um imóvel, mesmo que por um bom preço, que estivesse "em estado precário ou degradado". Assim, acaba-se a mística da frase que abre todos os bons filmes de terror de casas mal-assombradas: “Encontramos uma pechincha!”.

Ainda, 76% descartariam uma casa se estivesse em uma área propensa a inundações. 75%, se a área tivesse taxas de criminalidade muito altas. 55%, se tivesse umidade. Mas apenas 42% rejeitariam se "um crime muito violento" tivesse sido cometido lá, e 23% se "um criminoso notório" tivesse residido lá.

— Casas onde funcionou m bordel geram mais rejeição do que as antigas casas de assassinos — afirmou Connolly. —[talvez porque] na primeira existe o risco de que antigos clientes de prostitutas continuem a frequentar o local, sem saber que deixaram de oferecer serviços sexuais.

Em outras palavras, a grande maioria dos americanos se estabeleceria facilmente no local onde viveu um assassino em série, desde que seus crimes tivessem sido cometidos em outro lugar.