Artigos

A galega azulina

03/02/2019
A galega azulina

Havia algum tempo que eu não passeava pelo centro da cidade. Essa invenção dos judeus americanos, o Shopping Center, fez a civilização mudar de hábitos. Antigamente andar pela Rua do Comércio era um divertimento nas tarde mornas de Maceió; pequeno programa que os jovens adoravam. Os galãs ficavam encostados nos carros estacionados, paquerando as moças desfilando até a sorveteria DK-1 ou Danúbio antes de pegarem o bonde ou ônibus às suas casas.

Semana passada ao sair do Banco do Brasil na Rua do Livramento resolvi dar um bordejo no centro da cidade. Ao avistar a velha Sorveteria Danúbio, alegrei-me pensando em aliviar o calor com um delicioso sorvete.

Minhas glândulas salivares encharcaram-se ao pensar no sorvete de mangaba. A jovem atendente encheu a taça com duas colheradas esborrando, entregou-me aquela maravilha congelada. Sentei-me em uma mesa de onde podia avistar a rua, o vai-e-vem do povo na calçada.

Saboreei devagar o sorvete, enquanto me perguntava: Quem eram essas pessoas anônimas que faziam funcionar a vida de uma cidade?

Uma senhora gorda, de preto, andava devagar, sua mão direita segurava uma criança vestida de marinheiro, devia ter quatro a cinco anos, ela chorava pedindo para comprar algum brinquedo. A gorda negava, e impaciente puxava pela mão da criança que esperneava.

Senhores de terno passavam apressados, pareciam advogados ou corretores. Andavam para um lado, outros em sentido contrário, nunca se batiam, nenhum sorria. Algumas jovens bonitas davam graça à rua com calças apertadas, marcando as curvas, a barriga enganosamente coberta por pequenas blusas, inspirando fantasias nos homens em seus requebros.

Um mendigo, maltrapilho, calça rota, descalço, camisa rasgada, entrou na sorveteria de mão estendida. Um funcionário discretamente pediu que se retirasse empurrando o miserável. O mendigo me fez pensar na injustiça social do mundo, tive vontade em oferecê-lo um sorvete, ele escafedeu-se em direção à Praça Deodoro.

Eu estava em devaneios das injustiças sociais, degustando minha mangaba, quando ela entrou na sorveteria. Devia ter entre 26 a 30 anos, parecia ser classe média, com porte nobre de dama. Vestia uma camisa listrada do CSA, uma saia curta branca e um tênis furta-cor, brilhante, sem meias. Entrou na sorveteria como uma rainha, segurava uma pequena bolsa e uma sacola, com sei lá o quê dentro. Rosto juvenil, oval, coberto por cabelos curtos louros, à la gorçonne. Nariz afilado, um perfil de deusa grega. Tinha uma boca encarnada e carnuda, dentes alvos e brilhantes. Nas orelhas pendiam duas grandes argolas azuis, feito brincos. Beleza discreta, apenas percebida por conhecedores. A deusa encheu a taça de sorvete, voltou em direção à mesa.

      Ela sentou-se à minha frente. Colocou a bolsa, a sacola e a taça de sorvete em cima da mesa, cruzou as pernas, somente eu tinha a possibilidade de ver aquela bela mulher de perto. Percebi melhor, sua pele rosada parecia porcelana, sem nenhum defeito. Tomou sorvete como um ritual, cada colherada à boca, empurrava a colher, e retirava com uma lambida mostrando a maravilhosa língua carmim. Em certo momento, a Deusa retirou o celular da bolsa, iniciou uma conversa no zap com alguém bem humorado, ela às gargalhadas, discreta. Teclava sorrindo, e penetrava a colher cheia de sorvete vermelho, talvez morango, em sua boca carnuda e a retirava vazia, lambendo os lábios carmins.

De repente ela cruzou as pernas. Tive um susto. Foi uma virada de pernas displicentemente, devagar. Eu era o único ser que tinha ângulo para assistir aquele espetáculo particular, aquele momento de sensualidade. Não, ela não estava feito a Sharon Stone, a doce menina vestia uma calcinha azul claro. Apareceu nítida, dava para identificar ser lingerie de renda.

Em vários momentos repetiu o magnífico gesto. Até que descruzou as pernas, deixou-as levemente abertas em minha direção. Balançava discretamente. Se a galega não estivesse tão entretida conversando no zap, eu seria capaz de jurar que tudo aquilo era proposital.  E eu era o único ser vivo a assistir àquela sensualidade azulina. Na minha infância querida, aquele lance era chamado de cinema grátis; eu estava assistindo maravilhado um desenho animado.

O ritual continuou por algum tempo, o sorvete acabou; busquei outro, de pinha. Voltei, liguei o celular para apreciar com discrição enquanto ela teclava e sorria.

Veio o momento menos esperado. A bela azulina levantou-se com elegância e classe, arrumou a bolsa, a sacola, olhou para os lados. Sorriu-me discretamente, saiu da sorveteria. Lépida e faceira tomou rumo à Rua do Comércio.

Estava na hora de tomar meu táxi, sai da sorveteria, parei na calçada, apoiando-me na bengala. Ainda deu para admirar o andar da galega, em doce balanço a caminho do nunca mais. Parecia a dona do mundo. De repente, uma surpresa; ao passar pela Igreja do Livramento, ela olhou para trás, me encarou ao longe, como tivesse certeza de eu estar ali. Acenou-me com a mão e desapareceu entre os passantes. Foi a única e última vez que vi a galega azulina.