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Quando o remédio chega tarde demais
O remédio chegou horas antes da cirurgia, mas o estrago já estava feito. Dez quilos acima do peso, deformado pelo uso constante de drogas que afetam o funcionamento dos rins, Wellinton Gross enfrentou a operação, marcada às pressas por causa de uma complicação no duodeno, mais um reflexo da falta de tratamento adequado.
“O médico avisou: a cirurgia é delicada, você pode ficar na mesa. Mas não havia alternativa”, recorda a mulher dele, Josi Kades. “Ele já não tinha mais esperanças, estava cansado de lutar. A ironia é que torcemos tanto para esses frascos chegarem e quando finalmente vieram já não tinham mais serventia”, completa.
Gross morreu em outubro, dias depois da cirurgia e após meses lutando para receber de forma constante o medicamento Eculizumab, usado para controlar uma doença rara conhecida como HPN (Hemoglobinúria Paroxística Noturna), que afeta as células-tronco. Tinha 26 anos.
“Ele ficou dois meses sem remédio, mas isso foi na última fase. Durante o ano de 2017 os frascos vinham, davam por um período, depois faltavam novamente”, recorda Josi.
Processo. Associações de familiares e de pacientes com doenças raras estimam que cerca de 500 pessoas enfrentam atualmente problemas de atraso no fornecimento de remédios como o vivido por Gross. Pelo menos 13 mortes são atribuídas à falta de medicamentos. Agora, familiares de pacientes que morreram depois de esperar meses pelas drogas, mesmo com direito assegurado por liminares, preparam-se para processar a União.
Josi é uma delas. “Alguém tem de pagar. Ele não vai voltar, mas é preciso que autoridades saibam que não se pode brincar assim com a vida de alguém”, lamenta.
Em meados de março, o Ministério Público Federal também entrou com uma ação para garantir o fornecimento de medicamentos usados por 152 portadores de doenças raras.
“Os atrasos são constantes e as justificativas, variadas”, afirma a fisioterapeuta Cintya Mori, de 30 anos, também portadora de HPN. Cintya acompanha pelo WhatsApp o relato e o drama de vários colegas. “Enquanto isso, arcamos com as consequências. Eu, por exemplo, não saio mais de casa. Tenho medo de me ausentar e não entregarem o medicamento porque não estou aqui.” Há seis meses ela aguarda o remédio. “E a cada dia fico mais fraca.”
Josi não hesita em atribuir a piora do estado de saúde de seu marido à inconstância do tratamento. “Durante anos ele levou vida normal. Era pintor. Trabalhava muito e tínhamos planos, uma vida feliz”, resume. Para atestar o que diz, exibe um laudo médico, datado de setembro, dias antes da morte de Gross. Nele, se vê que durante três anos o tratamento de Gross foi feito de forma constante e que problemas de fornecimento começaram a ser identificados. “Cada vez que o remédio faltava, ele apresentava uma piora.”
Das últimas doses que chegaram, Gross conseguiu usar apenas uma. As demais Josi doou para um colega do marido no hospital, que também aguardava havia meses a normalização do fornecimento do remédio.
Depois da morte do pintor, serviços de saúde procuraram Josi cobrando a devolução dos frascos nunca usados “Falei sem medo que tinha doado. Ia deixar acontecer algo semelhante com outra pessoa? Não teria coragem.” Ao rever os vídeos que gravou do marido com a filha, Josi diz ficar claro o quanto ele foi definhando. “No fim, ele não tinha mais esperanças.” Emanuelle fala pouco sobre a falta do pai. Mas o choro vem à tona todos os dias, no momento de ir para escola. “Era ele quem a levava todos os dias para creche”, conta.
A casa em que viviam foi devolvida. Josi e a filha foram morar em casa de parentes. “Tínhamos dormido na casa nova durante dois dias. Tudo foi muito rápido. Como nossa vida juntos.”
Autor: Lígia Formenti
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