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A presença de Isaura

14/05/2017
A presença de Isaura

Na fila da loteria Heleno contemplava o belo pescoço da senhora em sua frente. De repente a coroa virou o rosto, ele reconheceu Isaura, ficou feliz ao rever um amor de sua juventude.
Não pararam mais de conversar. Depois continuaram contando suas vidas sentados num banquinho. Há muitos anos não se viam.

– E aí Heleno, você continua mulherengo?
-Hoje estou solteiro. Dois casamentos não deram certos. Sou ainda o romântico incorrigível procurando alguém para lhe substituir. Nunca encontrei.
– Você é um danado! Sempre gentil!
– Não é gentileza Isa. Depois de tantos anos, sou um sessentão e você beirando; uma mulher casada, respeito seu marido, mas posso dizer sem mágoa, você sempre foi a mulher de minha vida, nunca lhe esqueci, conservo esse amor bonito dentro de mim. Esse negócio de dizer que sou mulherengo é verdade, depois que você se casou, descambei para as raparigas, tornei-me um grande boêmio, tive muitas mulheres, minha vida desregrada foi fruto da dor-de-cotovelo por você me ter abandonado.

– De fato nosso amor foi bonito, todos comentavam nossa paixão, nosso namoro avançado. Naquela época namorados não transavam, mas você queria muito. Uma paixão louca! Era tarado por mim. Precisei me segurar muito para continuar virgem. Mas você foi culpado queria todas as mulheres do mundo.

– Lembra da bóia na praia da Avenida? Eu colocava a bóia de pneu de caminhão dentro d’água, você estirava seu corpo fazendo os braços de remo, e me segurava na borda da boia, por baixo as coisas aconteciam, ninguém percebia. À noite eu subia ás casas de raparigas de Jaraguá. Fazia o serviço pensando em você.

– Menino sem-vergonha! Como a gente era feliz!
– Como está o Josafá, o homem mais feliz do mundo, o homem que tem você nos braços há mais de 30 anos?

– Heleno, vou ser sincera. Desculpe o desabafo, afinal você é um amigo confiável. Namorei normalmente com Josafá, não era aquela coisa doida de nosso namoro. Nos casamos construímos nossa família. São dois filhos casados e independentes. Tenho um neto. Ano passado tive duas tristezas na vida. Descobri que Josafá tem uma amante, menina nova, sustentada por ele há três anos. Encheu-me de mágoa. E o pior, descobri um câncer na mama esquerda. Já me operei, tenho como tratar do câncer, os médicos dizem que posso controlar a doença e viver muitos anos. Mas o meu marido não dá mais para controlar, ele está apaixonado por essa sirigaita. Eu vivo só, ninguém sabe que se passa comigo, vivo indignada dentro de minha dignidade.
Heleno apertou sua mão, olhou nos seus olhos.

– Minha querida Isa, não aguento isso, deixe a merda desse marido. Eu ainda lhe amo, sempre lhe amarei, estou à sua espera o dia que você quiser, pelo resto da vida. Amanhã pela tarde estarei viajando, vou passar quase um mês no navio COSTA MARU, sai do cais do porto direto para Europa, atravessando o Oceano Atlântico. Quando eu retornar quero conversar com você. Está certo? Você promete que me vê? Me dê seu telefone.
Despediram-se com beijo no rosto.

À noite o Josafá chegou meio tarde e meio bêbado. Na hora de dormir, Isaura alisou o corpo do marido, beijou-lhe o pescoço, foi se achegando como pedisse carinho, um pouco de atenção. Nesse momento ele falou aborrecido, grosseiro.

– Não quero, não quero pegar sua doença. Você está com câncer Isaura!
Deu-lhe um empurrão, virou-se para o lado e adormeceu.
Humilhada e ofendida, chorando baixinho, ela correu ao banheiro, sentou-se na privada e caiu em prantos, chorou muito. Certo momento se recuperou, respirou fundo, levantou-se, olhou-se no espelho, achou-se uma mulher bonita, conservada, atraente. Veio-lhe um sentimento forte de auto-estima, jurou para ela mesma nunca mais chorar por Josafá, e que curava o câncer.
Retornou à cama, custou a adormecer. Fez um retrospecto de sua vida, ninguém mais dependia dela, ninguém. Pensou bastante no que seria o futuro que lhe restava junto à Josafá.

Eram oito horas da manhã quando ela levantou-se. Tomou café, trocou de roupa, foi ao cabeleireiro, à manicure. No shopping comprou roupas, foi ao banco, almoçou. Chegou em casa por volta das duas horas, arrumou a mala, escreveu uma carta simples para Josafá. Tomou um táxi.
O navio Costa Maru repleto de passageiros desencostava do cais. Na balaustrada do convés Heleno contemplava o mar, o casario da Avenida se afastando, diminuindo de tamanho. Ele feliz e embevecido com a cor do mar de sua terra, quando, de repente, sentiu uma mão por cima da sua; ao olhar de lado teve a mais bela visão de sua vida, a presença de Isaura.