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Sangue e areia

20/12/2015
Sangue e areia

Depois de três anos de muito estudo, privação e ralação, afinal Getúlio terminava o curso na Escola Preparatória de Cadetes de Fortaleza. Seu destino era a Academia Militar das Agulhas Negras, onde se formaria oficial do Exército. Naquele ano houve em Fortaleza uma “Maratona de Matemática”. Getúlio bom na matéria tirou 2º lugar. Ganhou uma passagem à Europa pela PANAIR.

      Ao chegar em Maceió mostrava a todos a passagem, seu prêmio, sua sonhada viagem à Europa. O programa de férias era simples como são as coisas boas da vida. Getúlio acordava cedo, vestia um velho calção de banho, descia para a praia da Avenida. Futebol, nadar, namorar com Sônia, encerrando o dia com boas noitadas na zona de Jaraguá.

        Certa tarde convidou a namorada para assistir no Cine São Luiz, “Suplício de uma Saudade”. Depois passearam pela Rua do Comércio apreciando vitrines das lojas. A Brasileira, A Radiante, Livraria Ramalho. Na bem ornamentada vitrine da Joalheria Machado destacava-se uma bonita tiara. Entraram na joalheria. Getúlio colocou a tiara na cabeça de Soninha. Ficou emocionado com a beleza da namorada. Ao ver o preço, o sonho acabou. Muito caro para dois jovens ainda dependentes dos pais. A tiara ficou catalogada nos sonhos impossíveis.

             Na véspera de Natal a moçada convergia à festa de rua na Praça da Faculdade, Praça Afrânio Jorge, no Prado. Getúlio amava assistir os folguedos natalinos, pastoril, chegança, guerreiro, reisado, o belo folclore de sua terra. Perto da meia-noite cada qual reunia-se com a família em sua casa para a distribuição e troca de presentes. Depois da ceia as famílias vizinhas se reuniam na Avenida da Paz para assistir a missa no coreto.

              Getúlio se emocionou quando Sônia apareceu, linda, exuberante, deslumbrante, cabelos castanhos longos, o sorriso mostrava a alegria de sua alma. Ele se aproximou, deu-lhe um beijo terno, entregou-lhe o presente de Natal.

               Ao desembrulhar o papel, apareceu uma linda caixa. Soninha abriu, emudeceu, balbuciou alguma coisa incompreendida. A emoção lhe deixou atônita ao perceber a cintilante, belíssima tiara. Colocou-a de imediato na cabeça. Uma rainha.  Só depois ela soube, seu amado havia se sacrificado, vendeu a preciosa passagem para Europa e comprou aquele belíssimo, desejado e impossível presente. Ela beijou-o, feliz, radiosa. Mostrava a todos sua belíssima tiara. Qual mulher não fica louca de felicidade por uma loucura de amor?

       Depois da missa se afastaram, ficaram conversando num banco da Avenida, beijos e carinhos excitantes. Já eram quase 3 horas da manhã quando Sônia convidou Getúlio para um passeio na praia, curtir as estrelas, noite escura de lua nova, molhando os pés, sapatos nos dedos.  Certo momento abraçaram-se, ela devagar sentou-se, tomou-lhe a mão puxando-o. Getúlio sentiu de repente os lábios no ouvido, escutou a mais bela declaração de amor.

     “- Getúlio, minha vida, eu lhe amo mais que tudo nesse mundo. Passei essa semana escolhendo um presente para você nesse natal. Foi difícil, tudo que imaginava, você merecia mais. Na hora de dormir ficava matutando, escolhendo o melhor presente. Pensei, refleti. Resolvi então lhe dar o que mais tenho de importante na vida, eu mesma. Nesse natal meu presente é meu corpo, meu sangue, meu amor. Sei que você me ama, me respeita, também é tarado por mim. Meu presente sou eu, minha virgindade, minha vida. Quero ser sua, quero que me possua…”

     Abraçaram-se na areia branca. Muitos carinhos, soltaram os desejos presos, desejos cheios de ternura. O vento soprava em direção ao mar, apenas Yemanjá, os botos, as carapebas, tainhas, arraias, ouviram os gritos de dor e de gozo de uma rainha de tiara dourada.

       Os dois ainda estavam deitados, abraçados, quando o Sol apareceu como um Rei. Despontou no horizonte bem longe uma cabeça vermelha como se fosse uma criança nascendo. Nuvens brancas tornaram-se laranjas – avermelhada, o mar tremeluziu de dourado. Uma luminosa e bela amanhã amanheceu, os amantes se levantaram, abraçados, descalços, felizes, com os sapatos entre os dedos, caminharam, cada qual para sua casa.

      Os raios de sol iluminaram a praia e a marca rubra de amor nos lençóis de areia branca, sangue e areia; sangue encarnado impregnado na areia alva e morna. Um dia bonito de verão surgia; testemunhando uma história de amor. Uma História de Natal.