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Coelho, chocolate, serra velho e Judas
Meus netos estão se empanturrando de chocolate, para alegria da Nestlé, da Garoto, dos chocolateiros e dos netos. Essa invencionice comercial, venda da “comida dos deuses” durante a Páscoa, está definitivamente institucionalizada pela propaganda massiva. Nossos netos vêem o ovo de chocolate e o coelho como símbolos da semana da paixão e morte de Cristo. Um período mais apropriado à meditação, à oração, tornou-se a festa do chocolate.
Os marqueteiros não combinaram com a Igreja, tão conservadora nos assuntos sobre sexo, pois, coelho é o símbolo de procriação, de fertilidade, de muitas transas, e chocolate é alimento afrodisíaco. Portanto, os símbolos da semana santa moderna, inventados pelo comércio, são apologias ao sexo, acho ótimo, é uma evolução da Igreja sempre castradora em sua história.
Juntar coelho com ovo de chocolate deu samba de crioulo doido. Meu neto, perguntou porque o ovo de coelho é de chocolate e o da galinha é de cozinha. Foi difícil explicar.
Nessa hora sou saudosista das tradições, tenho boas recordações da semana santa de meu tempo de criança.
Iniciava no Domingo de Ramos quando se comemora a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém montado em um burrico. Seus discípulos trouxeram dois burricos puseram em cima deles suas vestes, sobre elas Jesus montou. A multidão cortou ramos de oliveiras, espalhou-os pela estrada, formando um tapete de folhagem para o Rei dos Reis passar, em cima de um jerico. O povo acompanhava Cristo, clamava: “Hosana ao filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas maiores alturas!” Entrando Jesus em Jerusalém, toda cidade se alvoroçou. Perguntavam Quem é este? E a multidão clamava: “Este é o profeta Jesus, de Nazaré da Galiléia.” Assim li, aprendi, escrito na Bíblia.
Essa parte da história de Cristo é muito emblemática. Entrada triunfal num jerico, logo depois, traído e crucificado. Entretanto, para meninada dos anos 50, o melhor do Domingo de Ramos era a procissão. Iniciava na Catedral, os colégios femininos religiosos compareciam: São José, Sacramento, desfile de meninas bonitas, a moçada ia para paquerar. Um olhar, um sorriso, um piscar de olho valia a pena a missa, a procissão.
O feriado começava na quinta-feira santa, a partir desse dia proibia-se comer carne, em compensação minha mãe cozinhava um delicioso bacalhau, arabaiana, camarão, feijão no coco, jerimunzada, bredo, uma delícia. Por que essa maravilhosa comida só existe na semana-santa?
Na noite da quinta-feira havia uma brincadeira perigosa. A meninada saía em bando, 5 a 6 moleques para “serrar velho”. A serração do velho é uma tradição européia conhecida desde o século XVIII. Reunia-se um grupo de brincalhões, diante da casa de um velho, na noite da quinta-feira. Serravam uma tábua com muito ruído, muito choro, muito lamento. Os velhos serrados irritavam-se com a brincadeira. Pela crença popular, velho serrado não chegava à outra Quaresma. A garotada cantava alto acordando a vizinhança: “As almas do outro mundo, vieram lhe avisar que deste ano o senhor não vai passar”. “Encomende a alma a Deus, que seu corpo já não vale nada” e liam um bem humorado testamento em versos. Os velhos ficavam brabos. Certa vez levamos uma carreira do pai do Toroca na Pajuçara. Seu Pádua um velho ranzinza da Avenida, quando estávamos divulgando seu “testamento”, jogou um penico cheio de xixi, tive que ir para casa tomar um demorado banho. Houve caso de tiro.
Na Sexta-feira da Paixão parecia que o mundo havia se acabado. As rádios só tocavam músicas fúnebres, proibido ir à praia, até sorrir. As prostitutas fechavam as portas de Jaraguá e o balaio; nem pensar numa fortuita transada. À noite todos iam à Igreja para beijar os pés de Nosso Senhor morto. Finalmente o sábado de aleluia. A meninada preparava um boneco de pano, o judas, sempre com um nome de algum político ou algum inimigo público. Quando às 10 horas, os sinos da Igreja dobravam anunciando a aleluia, a moçada caía de cacete malhando o judas amarrado em um poste. Melhor do que malhar um judas, era roubar os judas dos vizinhos, dos pivetes.
Afinal chegava o domingo da ressurreição. Os padres contavam a história como Cristo depois de morto subiu aos céus. Hoje é um espetáculo pirotécnico com atores globais, para se assistir comendo chocolate, tomando vinho.
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