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Segurança pública, menoridade e a pajelança para chover
Dilma, na sua posse, disse (pela centésima vez) que vai combater a corrupção. Está preparando cinco novos projetos de leis. Nos Estados, novos governadores assim como secretários de segurança pública e chefes da polícia civil e militar se apresentaram. Todos submetidos ao ritual populista. Leopardismo burocrático (pretende-se mudar tudo para que tudo fique como está). Para solucionar a traição da esposa ou do marido, troca-se o sofá da sala. Os novos síndicos da massa falida chamada segurança pública discursam otimistamente. Não dizem a verdade de que a segurança pública é um paciente com febre altíssima que não dá sinais de melhoras. A criminalidade só aumenta no nosso país (em 1980 tínhamos 11 assassinatos para cada 100 mil pessoas; fechamos 2012 com 29 para 100 mil). Um descalabro desalentador. Com os discursos (verdadeiros cantos do cisne) vêm as promessas e os planos de ação.
Invariavelmente mexem demagogicamente com a emoção coletiva (e da mídia) e pedem novas leis penais. Sempre mais severas. Em São Paulo estão pedindo a redução da maioridade penal (“o povo tem que pressionar o Congresso”). Aliás, nem precisa pressionar muito. O Congresso adora o leopardismo penal (muda tudo para que tudo fique como está).
Os síndicos da massa falida da segurança pública repetem o mesmo mantra: endurecimento das leis penais. De acordo com a Secretaria Nacional de Segurança Pública, os jovens de 16 a 18 anos somente são responsáveis por 0,9% dos crimes praticados no Brasil. Se enfocamos exclusivamente os homicídios, o índice cai para 0,5%. Os mágicos têm o poder de fazer com que todo mundo momentaneamente esqueça o principal (99,5% dos assassinatos) e fique prisioneiro de um único ponto. Desvia-se a atenção do povo. Técnica do diversionismo. Claro que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) tem que ser modificado, por razões de proporcionalidade, no tempo máximo de duração da internação (hoje de três anos). Para crimes violentos esse tempo deveria ser maior. Concordo. Mas esperar que a lei penal não fiscalizada e não aplicada (que é o que acontece no Brasil) vá mudar a realidade é uma demência (também somos homo demens, além de sapiens).
Considerando como (não) funcionam as leis penais no Brasil, o pedido de novas leis penais tem a mesma eficácia para a segurança pública como a pajelança indígena ostenta para a geração das chuvas. Luta épica contra moinhos de vento. Ilusionismo.
Mas se as leis novas não funcionam preventivamente (a prova disso é o aumento de todos os crimes no Brasil), por falta da “certeza do castigo mais justo possível”, por que o povo (e a mídia) não para de pedir novas leis e o legislador não para de fabricá-las? Pelo seguinte: (a) a era da pós-modernidade deixou em segundo plano (ou abandonou) a “deusa da razão” iluminista assim como o mito do progresso técnico e do progresso moral e político; vivemos a era das emoções e paixões, a era dos afetos (Maffesoli); (b) a atividade repressiva (a reação ao crime), ainda que irracional, gera coesão social (Durkheim), posto que conta com amplo apoio popular e midiático; (c) o ganho eleitoral que proporciona, portanto, a edição de novas leis penais é inquestionável;
(D) a função de legislar, normar, classificar e julgar cria uma identidade (o legislador ou julgador moralista se julga distante dos pecadores, dos criminosos; “nós” não nos confundimos com “eles” – Karnal, Pecar e perdoar: 24; legislar e julgar indica o quanto eu estou certo), (e) a repressão (o castigo), ademais, é prazerosa (prazeroso) (a vingança é uma festa, dizia Nietzsche); (f) o humano não é apenas sapiens, é também ludens-festívus; (g) o castigo do pecador é a redenção do moralista (Karnal, citado).
A lista é enorme e prossegue da seguinte maneira: (h) o moralista legislador ou julgador não encara o pecado (o crime) como parte indissolúvel da esfera humana; a transgressão pertence, para ele, ao campo da exceção abominável; esquece que a natureza humana historicamente sempre foi inclinada ao pecado (Karnal); (i) toda narrativa sobre Jesus proclama a vitória do amor e da compaixão sobre a frieza da lei (mas o cristianismo, para crescer e se tornar uma multinacional potente, não seguiu esse caminho: “a vitória das instituições religiosas foi a vitória dos fariseus: a regra, as penitências, a aparência” (Karnal, citado: 27); acerta-se fazendo o errado; (j) todos somos inquisidores (amamos legislar e julgar e indicar o certo e o errado); (k) legislar, julgar e classificar parece ser um dos maiores deleites humanos (Karnal);
(l) o moralista legisla ou julga ou classifica “abominando” o pecado, o criminoso, o mal (abominar é um verbo religioso impregnado nas almas ou nos nossos momentos moralistas); (m) ao criar a norma ou ao proferir o julgamento (que representa o certo) inventa-se o pecado assim como a felicidade de não pertencermos ao bando dos perdidos, dos loucos, dos pervertidos e dos depravados; (n) o legislador legisla e todos julgamos não para atacar o errado (não se importa tanto com o resultado do seu produto), sim, para estar feliz ao lado do certo (e dos certos) (Karnal, citado: 29).
A lista termina assim: (o) quem legisla, julga e classifica se afasta da inclusão da sua pessoa no lado mau (Karnal); (p) o furor (a cólera desmedida, a paixão extrema) de quem legisla, julga e classifica é o medo de ser igual ao pecador e ao criminoso; (q) muitas vezes quem legisla, julga e classifica reprime nos outros aquela tendência pecaminosa que carrega dentro de si; (r) castigar duramente os outros pode significar castigar algo pregnante dentro de si; (s) quem legisla e julga vive um estranho autismo voltado aos seus valores e ao que acredita ser; (t) o legislador (o classificador, o inquisidor, o julgador) chega ao grau mais sofisticado de toda sua fantasia moral (e ética) quando acredita naquilo que acha que é (de tanto repetir regras, códigos, preconceitos, maledicências, repugnâncias, refutações, verberações, acabamos acreditando que somos o que enunciamos: honestos, impolutos, probos, irretocáveis etc.)
(Cabe aqui observar que esse mesmo fenômeno se passa com os eleitores frente aos políticos: repetem tanto que os políticos são desonestos, corruptos, improbos, que acabam acreditando que são o oposto deles); (t) falamos de alguém que desejamos ser (éticos, impolutos, honestos) como se fôssemos (Karnal). Por todos esses motivos vê-se que o populismo penal (legislativo, judicial, policial, político) não está com seus dias contados. Quando as pessoas acreditam em alguma coisa, dão vida para essa coisa, ainda que ela seja falsa e irracional. Nós todos (com pouquíssimas exceções) adoramos legislar, normar, julgar, classificar, criar regras, nos sentir no lado do bem, dos “certos”. Por isso é que pedimos e editamos leis continuamente (ainda que elas, sem fiscalização e aplicação, tenham raquítica eficácia em termos preventivos).
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