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O Último Natal da Nega Odete

21/12/2014
O Último Natal da Nega Odete

    No entardecer do dia 20 de dezembro de 1928, dentro de uma casa de porta e janela na Rua São Luiz no Pinheiro, ouviu-se um choro avisando ao mundo que estava nascendo Odete Augusto dos Martírios, a negra mais bonita e charmosa que perambulou por Maceió no século XX.
De mãe pobre e pai fujão, foi criada pela avó no bairro da Levada.  Cresceu uma menina alegre, cativante. Tinha o carinho da avó, as ruas, as praças, a lagoa Mundaú para brincar, pescar e catar sururu. Criou-se livre, sem estudar, correndo e percorrendo toda biboca da cidade.
Tornou-se uma moça bonita, rosto oval, cabelos negros, olhos penetrante. Corpo roliço, bem moldado, cheio de curvas acentuadas na cintura e nos quadris. Pele macia, sedosa como jamais alguém teve. Odete despertava desejo nos homens quando andava, rebolado natural, cadenciado, como se flutuasse ouvindo música.
Ainda não havia completado 15 anos, quando Floro, um belo rapaz, acadêmico de direito, morador da Rua Pedro Monteiro, filho de um rico comerciante, ficou encantado com a negra bonita cheia de sensualidade. Foi em seu encalço. Cantou Odete por mais de três meses, prometendo amor, carinho e agrado. Até que numa noite de lua seus corpos se unirem embaixo de uma jaqueira no morro do Tom Mix pelas bandas da praia do Sobral. Floro deflorou Odete. A negra gritava como uma selvagem, tinha doído, tinha gostado. Em casa, sua avó notou o sangue, esbravejou, não era mais moça, tinha perdido a virgindade, a honra da mulher, não queria sua neta quenga! Reclamou sua vida de pobre.
Durante a noite Odete chorou, lembrou os momentos de carinho, sentiu novamente a sensação de seu corpo penetrado. Tomou uma decisão, trabalhar, ser independente. Como uma analfabeta poderia arranjar emprego?
Uma família estava precisando de empregada doméstica. Odete bateu na casa na Praça Sinimbu. Foi atendida pela dona, gostou da moça negra, simpática, carne firme, disposta no trabalho. Ensinou-lhe a cozinhar. A menina aprendeu rápido, tornou-se exímia cozinheira. Odete fez parte dessa família durante muitos anos.
Sentia-se independente com o pequeno salário. Tinha um quarto, comida, era livre, sozinha, podia fazer o que bem quisesse. Ao anoitecer, depois do dia de trabalho, disposta, cheirosa, dentro de um vestido de chita, se pintava para sair em busca de diversão nas noites de Maceió. Fazer o que mais gostava, amor. Os homens se encantavam, prometiam. Nunca recebeu dinheiro por favores sexuais. Ela selecionava seus parceiros. Gostava de homem novo e bonito. Estudantes ficavam à espreita às sete da noite na praça, queriam Odete. Ela escolhia o parceiro para deitar na areia morna da praia da Avenida da Paz ou no gramado do sítio da Sinhá perto do Riacho Salgadinho.
Assim foi se espalhando a história da beleza daquela negra alegre de belo sorriso, dentes brancos, lábios grossos, uma loba no amor. Muitos homens desejaram, muitos homens foram rejeitados. Odete se transformou num mito, figuras das mais populares de Maceió. Adorava dançar, como não podia frequentar clubes, partia para as boates de Jaraguá apenas para rodopiar ao som dos conjuntos tocando os boleros. Muitos parceiros de dança tentaram levá-la para o quarto, ela recusava, queria apenas dançar.  O único local que aceitava uma empregada, negra, analfabeta, no salão de dança, era a zona. Noite alta, com o sapato pendurado entre os dedos, voltava para sua seu quarto, sua casa na Praça Sinimbu.
Por ser livre e independente, Odete era confundida como prostituta. Ela jamais aceitou um centavo de algum homem. Viveu solteira pelo resto da vida. Uma mulher digna que se oferendou ao amor. Na época, a atriz Leila Diniz, branca, rica, dedicou-se aos homens no Rio de Janeiro, foi aclamada musa de Ipanema. Odete, pobre, negra, dedicou-se aos homens nas areias da Avenida da Paz, foi aclamada prostituta. É preciso fazer justiça a essa mulher corajosa e livre.
Em 2006 encontrei a Nega Odete, por acaso, morava sozinha num pequeno quarto alugado perto da Praça da Faculdade, na parede um quadro de um ex presidente, solitária, como sempre viveu. Apesar das sequelas da idade, tinha auréola de alegria e felicidade. Escrevi uma crônica sobre essa figura lendária, levei-a ao lançamento de meu livro, Viventes de Maceió, ela personagem. Convidei alguns amigos, fizemos uma entrevista memorável para ESPIA, revista que eu editava na Internet. Todo natal eu e um conhecido Ministro deixávamos um presente para Odete. Certa feita lembrei-me em levá-la a uma confraternização de setentões, ideia rejeitada, alegação de desmoralização da reunião. Pedi desculpas, a desconvidei, eu e o Ministro compensamos com um gordo natal. Meses depois ela morreu aos 84 anos, foi o último natal da Nega Odete.