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Crimes da ditadura: STF ‘versus’ CNV e Corte Interamericana
Mais um problemaço está caindo no colo de Dilma Rousseff: depois de dois anos e sete meses de trabalho, incontáveis crises internas e forte resistência das Forças Armadas, precisamente no dia em que a histórica Declaração Universal dos Direitos Humanos (de 10/12/1948) está completando 66 anos, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) revela seu balanço final dos seus trabalhos, que culminaram numa lista de mais de 300 agentes do Estado acusados de crimes contra a humanidade cometidos no tempo da ditadura (1964-1985), hoje ainda apoiada por 12% dos brasileiros, segundo o Datafolha. Paralelamente às conclusões da CNV, existe uma sentença da Corte Interamericana (de 2010) que obrigou o Brasil a investigar e, eventualmente, punir os crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura. Há menos de um mês, a Corte fez uma dura cobrança ao governo brasileiro sobre o cumprimento da sua decisão.
02. No sentido contrário (apoiando a anistia) existe uma decisão do STF (de abril de 2010). Para a Corte, a Lei de Anistia brasileira, embora recebida pela Constituição de 1988 (de acordo com a visão do STF), é inconvencional (por violar as convenções de direitos humanos ratificadas pelo Brasil) e inválida (por contrariar frontalmente o jus cogens internacional). Disse a Corte que nem tudo que o STF diz ter sido recebido pela Constituição de 1988 é compatível com os tratados em vigor no Brasil e detém validade. A prisão civil do depositário infiel, por exemplo, foi declarada inválida pelo STF justamente tendo em conta os tratados de direitos humanos por nós ratificados, que segundo o próprio STF guardam na ordem jurídica brasileira nível superior às leis (RE 466.343-SP).
03. O Brasil é, reconhecidamente (69º lugar, com a rídicula nota 43, no Índice de Percepção da Corrupção, da Transparência Internacional), um dos paraísos mundiais da cleptocracia (Estado governado – também – por ladrões: que o digam casos rumorosos como Petrobra$, metrô$P etc.). Além de paraíso dos ladrões, somos também violentos (veja Darcy Ribeiro).
Há um forte apoio à decisão do STF (que a Corte disse ser inválida). O Brasil ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992 e aceitou a jurisdição da Corte Interamericana em 1998 (no governo FHC). A cada novo tratado subscrito o país abre mão de parte de sua soberania. Juridicamente o Brasil está obrigado a cumprir a decisão da Corte Interamericana (isso ficou evidenciado no voto do min. Ayres Britto, quando do julgamento da Lei de Anistia brasileira). E se não cumprir? Está sujeito a sanções internacionais (teoricamente poderia até ser expulso da OEA). Mas com o império da “lei” (dos tratados) no plano internacional se passa algo parecido com o império da lei no Brasil: a fragilidade institucional é enorme. A coerção do direito, em consequência, é branda e flexível.
04. Se o Brasil não cumprir a decisão da Corte Interamericana estará apenas ratificando algo que já é da sua tradição, nascida logo após 23/11/1826, quando nosso Império assinou uma Convenção com a Grã-Bretanha para promover a abolição do tráfico de escravos. Por força dessa avença bilateral o comércio interatlântico de escravos seria ilegal no prazo de três anos.
Mas nada disso foi cumprido pelo Brasil (como narram os historiadores), que apenas por volta de 1850 começou a reduzir o comércio de escravos. A demora em cumprir o combinado com os ingleses deveu-se não só aos interesses econômicos ruralistas dos fazendeiros, senão também ao fato de que quase todas as casas urbanas de classe média tinha seus escravos para os afazeres domésticos (veja J. M. De Carvalho, Cidadania no Brasil). O escravagismo (embora abolido em 1888), impregnou a alma do brasileiro e isso tem tudo a ver com nossa atual genocidiocracia. As autoridades brasileiras, assim, quando assinaram a convenção bilateral com a Grã-Bretanha apenas fingiu que cedia às suas pressões, ou seja, tomaram providências meramente aparentes para combater o abominável tráfico. Foi, na verdade, mais um engodo praticado pelo Brasil, apenas “para inglês ver”. Desde esse episódio o Brasil, em termos internacionais, é visto como uma “republiqueta de terceiro mundo”. Não é distinta, aliás, toda América Latina.
05. Certa vez Simon Bolívar manifestou profunda decepção com a América Latina e disse (citado por Huntington, em A ordem política nas sociedades em mudança): “[Na América Latina] os tratados são papéis, as constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida um tormento”. Seu vaticínio não era incorreto: em pleno século XXI continuamos nosso tormento porque está difícil de chegar a anunciada democracia que traria prosperidade e cidadania a todos.
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