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Nega Odete

17/09/2014
Nega Odete

    Na década de cinquenta, era comum vários adolescentes, do sexo masculino, reunirem-se em grupos, chamados de turmas, nas praças públicas de Maceió. As maiores turmas foram as das Praças do Rex, Martírios, Deodoro, Rayol, Centenário e Sinimbu. A mais famosa, entretanto, foi a da Praça Deodoro, que também era a da vizinha Praça da Cadeia. Um de seus integrantes, o Dida, foi campeão mundial de futebol. Todas elas foram celeiros de atletas. Alguns deles se tornaram grandes craques. Existia uma forte rivalidade entre as turmas. Nenhum dos seus membros passava, sozinho, em outra praça, pois corria o risco de levar uma surra ou, na melhor das hipóteses, de ser desafiado para uma briga, caso não tivesse a proteção da amizade de alguém da outra turma. Geralmente, a rivalidade extravasava nos jogos dos times que se formavam nas praças. O Itatiaia, o Bonfim, o Pajuçara, o Deodoro, o Tiradentes foram os melhores.
Havendo minha família residido nas ruas João Pessoa e Dias Cabral, pertenci a duas turmas: a da Praça dos Martírios e da Praça Deodoro.
Somente, porém, uma pessoa era bem aceita em todas as turmas. Desejada, estimada, cobiçada, amada, ela circulou com a maior desenvoltura, durante os anos cinquenta e sessenta, junto a milhares de jovens. Nega Odete reinou absoluta diante de várias gerações. Generosa, amou pretos e brancos, ricos e pobres, feios e bonitos com a mesma prodigalidade. Compreensiva, jamais fez discriminação à qualidade nem à quantidade. Meiga e sensual, era toda doçura para com os iniciantes. Quantos traumas e psicoses ela não deve ter evitado? Mesmo os mais ousados ficavam tímidos diante de sua experiência e de sua arte natural.
A primeira imagem em que a visualizo, em minha memória, foi de quando, uma manhã, já perto das doze horas, ao sairmos das aulas, no Colégio Batista Alagoano, um dos alunos, avistando-a, grita: Nega Odete! Caminhava em direção ao “Zeiga” com uma marmita. O grito eletrizou a rapaziada. Um coro organizou-se: Nega Odete! Nega Odete! Ela, em resposta aos gritos e aos assobios, aumentou o bamboleio do corpo e acenou, sorrindo para a garotada. Vim conhecê-la, realmente, quando comecei a frequentar a Praça Deodoro.
Tempos depois, lendo o imortal poema de Jorge de Lima, “Essa Negra Fulô”, lembrei-me imediatamente de Odete. O maior poeta de Alagoas, numa antevisão do seu gênio, a descreveu quando cantou toda a magia e a beleza da mulher negra.
No  início de 1986, Suruca promoveu um almoço na Barra de São Miguel, com os antigos companheiros que participaram da melhor fase da Praça Deodoro. Compareci. Foi um encontro com minha mocidade. Estavam o Dudu, um dos melhores  goleiros que nosso Estado já teve e uma espécie de guru para a turma; João Boleado, Veiga, Bá, Expedito, Edson Alves e tantos outros. Conversamos sobre o passado. O nome de Odete surgiu. Fui informado de que estava atravessando dificuldades.  Pedi que a levassem ao Palácio do Governo. Recebi-a no Salão Nobre. Observei-a, enquanto o Capitão do Gabinete Militar a conduzia a minha presença. Os anos não pesaram sobre ela. Guardava a mesma sensualidade que tantos desejos inspirou. Levantei-me, respeitosamente, para cumprimentá-la. Suas mãos estavam frias. Era visível a emoção que a dominava. Pela primeira vez,  visitava o Palácio. Tentei tranquilizá-la. Afirmei, em tom de brincadeira:
“Sou apenas eu”. Ela sorriu. Achei que estava se recordando daquele garotão alto, magro, desengonçado, que o destino levaria por três vezes a governar Alagoas. Alimentei a conversa com perguntas. Descontraída, explodiu sua gostosa gargalhada. Ajudei-a. Mas os problemas do Estado me  chamavam ao  presente. Acabara o hiato de paz. Despedi-me. Ela se levantou das austeras cadeiras da mesa de despachos e saiu. Sentindo-se admirada, soltou seu corpo. Os meninos concederam graciosidade aos passos. Era a vida que caminhava, sem preconceitos e complexos, em sua liberdade plena.
Ao tomar conhecimento de seu falecimento, sinto uma lágrima molhar-me a face. Sem riquezas materiais ou dotes intelectuais que a diferenciassem, Nega Odete se fez imortal. Ela é parte da História de Maceió.