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O que a concentração do streaming significa para narrativa cultural? Analistas comentam
A aquisição da Warner pela Netflix e as principais plataformas de streaming serem dos EUA revela uma influência enorme na formação de narrativas e opinião pública no meio digital, tornando alguns temas naturais e outros invisíveis.
A possível aquisição da Warner Bros. pela Netflix extrapola as fronteiras de uma simples operação financeira ou disputa de mercado no setor audiovisual. O que está em jogo é o impacto dessa movimentação sobre a circulação e de conteúdos e narrativas no mercado internacional e a concentração da influência cultural em uma única plataforma.
Em um momento em que os streamings se consolidam como principal meio de ver séries e superam os cinemas para consumo de filmes, plataformas criadas majoritariamente nos EUA — Netflix, Prime Video, Disney+ como exemplos — são as de maior destaque e possuem audiências ao redor do mundo. Esse cenário reforça a centralidade das empresas norte-americanas na definição de tendências narrativas e formatos que circulam globalmente.
Diante disso, essa possível incorporação da Warner pela Netflix despertou o debate na concentração de mercado, a pluralidade de conteúdo e quais seriam os impactos na formação de opinião pública, tomando a atenção até mesmo da Casa Branca sobre o assunto.
A Sputnik Brasil conversou com especialistas neste tema para discutir se quem domina o streaming domina a narrativa cultural. Segundo Raphael Machado, analista geopolítico, a democratização da internet deu mais espaço para que mídias digitais e tirasse o domínio de meios "tradicionais" como a televisão e cinema.
"É inegável, portanto, que por essa substituição do cinema e da TV tradicional, o conteúdo veiculado pelos serviços de streaming acabam tendo uma influência crescente na formação da opinião pública", explica.
Machado exemplifica isso apontando em como serviços desse segmento investem mais na realização de documentários "supostamente imparciais". "Exemplos de impacto disso temos visto em documentários recentes sobre assassinos, que acabam provocando uma mudança na opinião que parte significativa da população tem sobre esses personagens".
Para João Amorim, diretor e produtor da Amorim Filmes, o controle na opinião pública é sútil.
“Os streamings impactam a opinião pública porque controlam a circulação do imaginário: pela escala e pela recomendação do algoritmo, fazem uma fabricação do consentimento, tornando certas narrativas 'naturais' e outras praticamente invisíveis”, ressalta.
Domínio dos EUA
Os EUA já mantinham um controle na opinião pública através de sua influência cultural, representada em parte por Hollywood, os principais estúdios de cinema. Com o surgimento da internet e seu desenvolvimento nas próximas décadas, impulsionadas pelos norte-americanos através de tecnologias vinculadas à internet e à computação, isso fez com as principais plataformas de streaming no mundo fossem norte-americanas.
Machado lembra que das cinco plataformas, duas pertencem às megacorporações da Big Tech – Amazon Prime e Youtube Premium – enquanto a Disney+ e a HBO Max são investimentos de megacorporações já estabelecidas na indústria cultural, sendo elas a Disney e Warner Bros., respectivamente. "A Netflix tendo origens mais heterogêneas, ainda que vinculadas à indústria da tecnologia da informação."
Amorim lembra que, além dessa influência de décadas do cinema, música, TV e publicidade que criou um "desejo global" por produtos dos EUA, a língua inglesa como língua franca facilitou na exportação e padronização de conteúdo.
"Com capital, tecnologia e escala, as plataformas americanas operam como infraestrutura desse soft power: distribuem conteúdo e, ao mesmo tempo, consolidam influência cultural."
Ambos entrevistados notam que há plataformas fortes fora do eixo ocidental que poderiam equilibrar o controle na opinião pública. Serviços como a indiana JioHotstar, as chinesas Tecent Video e iQIYI e a russa Kinopoisk são exemplos de plataformas que trazem competividade em número de usuários. Cada streaming, excluindo a russa, possui mais de 100 milhões de usuários.
Contudo, como sublinha Machado, maioria atende principalmente seu público doméstico. "A JioHotstar atende apenas na Índia, a Tencent Video atende fora da China, mas praticamente apenas na Ásia, enquanto a iQIYI, supostamente, é mundial, mas é praticamente desconhecida, de modo que seus clientes são quase todos chineses". Ele também cita o caso do Brasil com a plataforma Globoplay da Globo.
"Nesse sentido, pensar num 'equilíbrio' nessa área significaria pensar numa 'multipolaridade do streaming', em que não há um ou dois rivais disputando hegemonia planetária com a Netflix, Amazon Prime, etc., mas com cada uma das potências regionais conseguindo desenvolver seus próprios serviços de streaming para um público doméstico e países vizinhos."
Amorim também lembra que barreiras geopolíticas, de idioma, de marca e de distribuição impedem que esses streaming cheguem a audiências globalmente, resumindo que, na prática, estas servem como um "polos regionais" e não "contrapesos mundiais equivalente".
Exportação da cultura woke e produções independentes
Muito se fala em censura de produções norte-americanas quando chegam para audiências estrangeiras, como na China ou na Rússia. Cenas que focam no consumo de drogas, uso de palavrões no diálogo ou conteúdo LGBT em geral são alteradas ou cortadas para que esses filmes possam circular entre as pessoas.
Machado, porém, explica que não se trata de censura exatamente, mas de um reconhecimento de que nos produtos ocidentais há uma "certa dimensão propagandística que visa a engenharia social em certos países-alvo".
O analista cita como exemplo uma diretriz da China que desencoraja a produção ou veiculação de séries em que protagonistas femininas tenham romances com CEOs e milionários, pois acredita-se que o consumo excessivo desse tipo de conteúdo poderia levar uma distorção nos relacionamentos reais dos cidadãos chineses.
"O grande 'x' da questão nesse tópico é que, de um modo geral, o Ocidente tomou certas decisões culturais progressistas ao longo das últimas décadas, mas passou a considerar que essas decisões não eram escolhas próprias, senão mandatos civilizacionais universais, emanações dos 'direitos humanos' que precisam ser exportadas para todo o mundo."
O analista finaliza pontuando como a concentração do streaming pode desrespeitar civilizações que "cultivam com maior zelo os valores tradicionais", citando Rússia, China e Índia como países com sua própria visão sobre questões sexuais, étnicas e religiosas, mas que o Ocidente se recusa a respeitar a singularidade desses povos.
Também finalizando, o cineasta vê que projetos independentes terão mais pressão para alcançar o público geral, mais dependência de uma única plataforma para ter visibilidade e que, enquanto alguns possam ter alcance internacional, terão que se alinhar com os interesses da marca.
"Por isso, cresce a importância de regulação, defesa da concorrência e políticas públicas que garantam diversidade, financiamento e soberania cultural, como a regulamentação do streaming."
Por Sputinik Brasil
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