Internacional
Análise: 20 anos após a morte de Jean Charles de Menezes, xenobofia se agravou na Europa e nos EUA

À Sputnik Brasil, analistas afirmam que o preconceito contra estrangeiros, baseado no perfilamento racial, aumentou na Europa e nos EUA, alimentado pela estratégia de apontar "o outro", "o estrangeiro", como raiz de todos os males sociais.
A morte do brasileiro Jean Charles de Menezes por agentes da Scotland Yard, a polícia metropolitana de Londres, completa 20 anos nesta terça-feira (22). Nascido em Gonzaga, em Minas Gerais, Menezes se mudou para Londres em 2002, onde passou a trabalhar como eletricista.
Em 2005, quando Londres vivenciava uma série de atentados terroristas que miravam o transporte público, ele foi morto ao ser confundido com um terrorista etíope naturalizado britânico chamado Osman Hussein.
Hussein era procurado por ter tentado detonar uma mochila com explosivos em um trem no dia anterior à morte de Menezes. O explosivo, no entanto, falhou, e os agentes encontraram na bolsa documentos de Hussein. Ele residia no mesmo prédio que Menezes, em Tulse Hill, sul da capital britânica.
Na manhã em que Jean Charles foi morto, agentes foram destacados para o prédio para localizar Hussein. Quando Menezes saiu do prédio para realizar um serviço, foi confundido com o terrorista e passou a ser perseguido até ser executado com sete tiros, após entrar em uma composição do metrô de Londres, na estação de Stockwell.
A operação desastrada acirrou o debate sobre etnicidade e preconceito no combate ao terrorismo. Hoje, duas décadas depois, a imigração ainda é um tema nevrálgico, politicamente explorado, sobretudo nos EUA e na Europa.
À Sputnik Brasil, Rogério Baptistini, sociólogo e cientista político da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que Menezes foi vítima do despreparo da polícia de Londres, em uma época que o medo se alastrou pela capital britânica por conta dos ataques terroristas, deixando um saldo de 52 mortos e 700 feridos.
Baptistini aponta que a onda de ataques na época foi perpetrada por britânicos nascidos ou naturalizados, mas que o fato de os autores serem jihadistas, com conexões com grupos como a Al Qaeda, gerou "um ressentimento social generalizado em relação aos árabes e aos muçulmanos em geral", que ele afirma ter sido determinante para a morte de Jean Charles, pois "o foco em um estereótipo o transformou em ameaça e selou o seu destino".
"O que a polícia classificou como uma trágica fatalidade, na verdade resultou de uma prática discriminatória conhecida como racial profiling (perfilamento racial), cada vez mais em uso desde então, ainda que as autoridades neguem. Trata-se da abordagem de sujeitos com base em sua raça, cor, etnia ou origem nacional, sem evidência de envolvimento em qualquer atividade criminosa", explica o especialista.
Para Baptistini, desde a morte de Menezes houve certa evolução no debate sobre a desumanização dos imigrantes, e o preconceito contra esses grupos ganhou maior visibilidade, mas os desafios ainda são enormes.
"Movimentos de extrema direita crescem em todo o mundo, sobretudo na Europa e nos EUA, e culpam essas pessoas — estrangeiros em seus países — pelo desemprego, pela insegurança e por diversos problemas sociais. Elas servem de bode expiatório para os males gerados pelo funcionamento de um sistema econômico e financeiro pautado exclusivamente na acumulação, sem qualquer preocupação com a dimensão humana."
O especialista enfatiza que a xenofobia avança com mais força nos EUA e na Europa porque são locais que chegaram antes ao desenvolvimento do capitalismo industrial e se beneficiaram da organização do sistema-mundo.
Portanto, além das riquezas do resto do planeta, são regiões que também recebem pessoas em busca de oportunidades de vida e de trabalho digno. Porém crises econômicas rebaixaram as expectativas, fazendo com que imigrantes, principalmente de pele escura, "sejam vistos como invasores e concorrentes, responsabilizados pela degradação da vida social".
"O ressentimento da classe média e da classe trabalhadora é canalizado contra um adversário frágil e se generaliza a xenofobia como estratégia de manipulação política", afirma Baptistini.
Para o sociólogo, os 20 anos da morte de Menezes podem servir para lembrar que "a noção de humanidade é construída, e, como toda construção, é frágil e requer atenção constante", pois há os que lucram com a disseminação do ódio e da intolerância. Entretanto, ele faz um alerta:
"Um debate que aposte na humanização, e que enfrente e rejeite a engenharia social baseada no racial profiling, entra em rota de colisão com adversários poderosos, que hoje travam uma luta pela hegemonia política em escala global."
Arnaldo Francisco Cardoso, cientista político, escritor e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, afirma que a morte de Menezes deve ser vista no contexto da guerra ao terror imposta pelos EUA após os atentados do 11 de Setembro.
"Uma ampla legislação antiterrorismo foi implantada no Reino Unido, assim como em outros países europeus, resultando em excessos cujas principais vítimas foram imigrantes de todo o mundo", afirma.
Ele ressalta que, a despeito de discursos contrários, os últimos anos têm revelado um agravamento da situação dos imigrantes em todo o mundo, com o alastramento da xenofobia e do racismo.
Cardoso aponta como fator para essa tendência, especialmente na Euroapa e nos EUA, a estratégia política de criar um inimigo externo, que nesse caso seria o "outro", "o estrangeiro", com o objetivo de "criar coesão nacional, comumente em torno de uma liderança do tipo autoritária-carismática". Essa estratégia foi construída diante da reconfiguração do poder mundial das últimas décadas, que resultaram em perda relativa de poder da Europa e dos EUA e ascensão da China.
"[...] protecionismo, racismo, ódio ao estrangeiro têm sido as respostas de lideranças políticas e sociais das nações que se sentem ameaçadas pelo 'outro', especialmente pelo Sul Global, que clama por justiça social depois de séculos de colonialismo e imperialismo."
Ele acrescenta que o assassinato de Jean Charles de Menezes revelou, além do racismo estrutural da polícia britânica, as brechas para fraudes processuais e a desigualdade de meios entre o cidadão comum, ainda mais o estrangeiro, e o Estado e suas instituições, e destaca a importância da solidariedade que o caso despertou entre ativistas, jornalistas, organizações da sociedade civil britânica e de outras nações.
"É somente com a articulação e o fortalecimento da sociedade civil que os erros e abusos do poder estatal podem ser corrigidos e ou evitados. Na estação Stockwell, em Londres, foi instalado um mural em memória de Jean Charles de Menezes que pode ser sentido como um memorial ao imigrante, em prol das lutas por direitos, respeito e dignidade da pessoa humana."
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