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Para além dos safáris: fenômeno de articulação política e jovem, Quênia tem mais que belas paisagens

14/05/2025
Para além dos safáris: fenômeno de articulação política e jovem, Quênia tem mais que belas paisagens
Foto: © AP Photo / Brian Inganga

Elefantes, leões e safáris são as primeiras imagens que aparecem na ferramenta de busca na Internet quando se soletra "Quênia", com suas savanas douradas e riquezas naturais que abrigam flora e fauna deslumbrantes, como o Parque Nacional de Amboseli.

O que demandará uma pesquisa mais aprofundada sobre a ex-colônia britânica é o fato de essa nação africana ser também um hub tecnológico no continente, com uma constituição robusta e com democracia estável, além de uma juventude inovadora que impulsiona startups e ativismo digital.

A historiadora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em relações internacionais Magide Vieira esteve no Quênia recentemente e contou, em entrevista ao podcast da Sputnik Brasil, Mundioka, a respeito das principais tensões políticas, os desafios sociais e as curiosidades dessa nação em rápida transformação, cuja independência completou pouco mais de seis décadas.

Os expressivos protestos — ao longo de 2024, sobretudo nas redes sociais — mostraram o poder de articulação de uma juventude 2.0, que denunciou com criatividade e altivez o aumento de impostos de itens básicos com o projeto de lei de finanças, que acabou sendo derrubado por pressão popular.

Segundo ela, a geração Z foi crucial para fortalecer os protestos, porque esclareceu os impactos da nova lei para a população mais humilde, cujo principal idioma é o suaíli, sobretudo nas regiões mais afastadas das principais cidades.

"A juventude pegou o finance bill [projeto de lei de finanças] e começou a traduzir no TikTok em suaíli. Começou a fazer vários vídeos em suaíli, e não só em suaíli. Foram fazendo no dialeto kikuyu, no dialeto que a região Mau Mau compreende, e foram adaptando assim e popularizando", disse, ao acrescentar que houve ainda uso de inteligência artificial para explicar o impacto daqui a dez anos.

A princípio, a reação do governo foi violenta, causou mortes, prisões e sequestros por todo o país. Mas a força das ruas e das redes foi tão grande, argumentou a analista, que o governo voltou atrás, não sancionou a lei, taxou importações e cortou salários governamentais e de políticos.

O parlamento também se movimentou ao criar espaços de participação popular, comentou ela, que esteve presente em uma dessas audiências públicas com observadores internacionais, sindicatos, estudantes e entidades estudantis sobre direitos da juventude.

"Esses processos tiveram um profundo impacto de como a política vai se reorganizar daqui para frente no país", comentou ela, que também é militante no Núcleo do BRICS e no Coletivo de Relações Internacionais da Juventude do Partido dos Trabalhadores (PT).

De acordo com Vieira, o parlamento, que chegou a ser invadido por uma multidão no ano passado, está deslegitimado, principalmente devido à votação majoritária para aprovar a lei de finanças.

"[O parlamento] faz alguns esforços de audiências públicas, de tentar aumentar a participação popular. Mas a categoria políticos está em crise. Os parlamentares também estão em crise […]. Esses jovens que foram pras ruas não têm partido, não têm liderança, não têm compromisso também. A imprensa nem é especializada em política. Eles querem contar a narrativa das suas plataformas."

O país vive uma ebulição política, na opinião da especialista, em que o presidente atual ganhou as eleições, em 2022, com o discurso de governar para os mais pobres, com origem no movimento estudantil e que não faz parte dos grupos sociais e políticos que historicamente governaram o país.

"Ele [presidente William Ruto] foi eleito com um programa completamente diferente do que está aplicando. Esse é o problema. O FMI [Fundo Monetário Internacional] está impondo. Essa influência norte-americana e europeia no país está fazendo com que achem que essa é a única receita possível", opinou. "O custo de vida caro é nada mais do que essa cartilha econômica heterodoxa que o FMI implica nos países", criticou.

Os vários empréstimos feitos pelo país com o FMI, as consequentes dívidas e a rigidez fiscal, para a especialista, são o motor da política de austeridade do atual governo.

A entrada para o BRICS a para a nova Rota da Seda pode mudar positivamente os rumos do Quênia para uma alternativa de ajuda financeira internacional, ante à política predatória do FMI, na avaliação de Vieira.

"Especialmente o investimento chinês e essa possibilidade de uma alternativa pelo próprio Novo Banco de Desenvolvimento, tem outra perspectiva, que é a perspectiva de que os grandes investimentos nacionalizam depois […].

"Eles permitem uma soberania das empresas nacionais."

Flores, fertilizantes, turismo e muito mais

Pese os conflitos e as crises no âmbito social e político, o Quênia é exemplo mundial em muitos aspectos, a começar por uma das constituições mais progressistas da África Oriental, pelo desenvolvimento econômico potente e pelas leis eficazes para a preservação do meio ambiente, pontuou Vieira:

"Por exemplo, quando você chega no país, tem um aviso no avião falando: 'Se você tiver sacola plástica, retire-a imediatamente.' É proibido no país, é crime, não entra plástico."

Grande exportadora de flores e fertilizantes, o Quênia tem tradição de pastoreio de gado para consumo interno, além do turismo, que acaba ganhando os holofotes das pesquisas da Internet, sobretudo devido aos safáris, que Vieira também teve a oportunidade de conhecer.

"A gente viu um leão almoçando um búfalo. Descobri que todas essas palavras do [longa-metragem] 'O Rei Leão' são palavras em suaíli. Simba é leão. Puma é javali. Hakuna Matata é tudo bem", comentou ela, fazendo analogia à história da Disney.

A culinária é um atrativo à parte, comentou, com pratos típicos que agradam todos os gostos e são de lamber os dedos, literalmente, pois é hábito no país comer com as mãos.

"Um mais gostoso que o outro. Cordeiro, carneiro, peixe no churrasco. Comi uma coisa deliciosa chamada galho. O galho eles comem muito. É um milho branco triturado. Esse milho vira uma pastinha, e essa pastinha você recheia. Nos que eu comi, geralmente sempre tinha repolho, couve. Você botava assim pra fazer o equilíbrio nutricional, e depois você botava a carne do cordeiro."

Influência muçulmana e poligamia

Embora cerca de 80% da população se autodeclare cristã, de acordo com o censo do país de 2009, a segunda maior religião do país, o Islã, seguida por cerca de 11% da população, tem grande influência na sociedade, afirmou a historiadora. Além disso, pessoas do sexo masculino podem ter até seis esposas, se a primeira esposa autorizar.

"É uma adaptação da influência muçulmana com a tradição do país, que também tem a poligamia em algumas tribos. […] é um encontro dessas influências […], uma sociedade conservadora. Mas um povo muito acolhedor, muito animado. Musicalmente, muito disposto a celebrar", concluiu.

Por Sputinik Brasil