Brasil
'Ainda Estou Aqui' prova poder do cinema como soft power: 'Poderoso, mas negligenciado pelo Brasil'

A maior festa brasileira ganhou deslumbre e euforia extras neste domingo (3) de Carnaval com a vitória do filme "Ainda Estou Aqui", do diretor Walter Salles, como melhor filme estrangeiro, na cerimônia do Oscar, maior premiação da cinematografia mundial.
Foliões e blocos foram tomados por sósias da atriz Fernanda Torres, que faz a personagem principal da obra, e, pelos quatro cantos do país, o anúncio da primeira estatueta dourada para o Brasil foi recebido com o estardalhaço digno de um gol da seleção na final da Copa do Mundo.
O longa, que também disputou o prêmio de melhor filme da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos e de melhor atriz, foi baseado no livro do escritor Marcelo Rubens Paiva, que conta a história do drama de sua família após o pai, Rubens Paiva, ser sequestrado, morto e ter o corpo desaparecido, em 1971, pelo governo da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985).
Os efeitos e feitos desse sucesso evidenciaram que qualidade, técnica e público não são empecilhos para despontar o cinema brasileiro no topo da indústria cinematográfica mundial, de acordo com especialistas na área ouvidos pela Sputnik Brasil.
O poder do cinema brasileiro de influenciar outras nações por meio da atração e persuasão é subaproveitado pelo Estado, de acordo com o jornalista e escritor Jotabê Medeiros e o professor titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rafael do Santos.
Santos lembrou que o Brasil possui sólido "know-how em telenovelas" no mundo, bem como produções cinematográficas renomadas internacionalmente há décadas. O que falta, comentou, é política pública específica para investir nesse setor e transformá-lo em ferramenta de marketing:
"A economia criativa de uma maneira geral, as artes de maneira geral, servem como um poderoso "soft power" para o Brasil, porque o Brasil tem uma cultura riquíssima, a música, o carnaval, as artes plásticas, o teatro, enfim. E o cinema, que sempre resistiu aos momentos difíceis, aos momentos de falta de investimento".
Também chamada na geopolítica de "soft power", essa estratégia de criar uma imagem positiva e inspirar admiração no exterior busca gerar vantagens para um país, como divulgação, afirmação cultural, histórica, atratividade turística, criação de símbolos e diálogos transnacionais, elencou Medeiros, que lamentou a falta de visão governamental sobre o potencial da arte de colher louros comerciais, econômicos e culturais.
"O mercado de cinema amargou sucessivos boicotes ao longo dos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro — e mais dois de Michel Temer. Isso trouxe um atraso considerável para o setor audiovisual, que vinha crescendo. O governo Bolsonaro descumpriu acordos internacionais, travou editais, censurou cineastas, filmes e temáticas, sequestrou o Fundo Setorial do Audiovisual. Tudo por uma questão ideológica", lamentou ele.
Entretanto, há muitos caminhos para tornar a sétima arte uma ferramenta positiva na política externa, argumentaram os entrevistados, com regras e fiscalização adequadas, investimento na formação de público, na socialização da experiência audiovisual por meio da educação:
"Dinheiro e os editais, sozinhos, não garantem democratização e ampliação de mercados. É preciso atuar nas políticas de promoção, distribuição, divulgação e exibição", defendeu o jornalista, ao afirmar que a maior parte dos recursos do cinema, proveniente do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), atualmente, é monopolizado por um grupo político.
O professor da UERJ ponderou que apesar do fomento indireto pela lei Rouanet do audiovisual e do Fundo setorial do audiovisual de quase R$ 1 bilhão por ano no mercado audiovisual, não basta investir apenas em produção:
"É preciso também ter uma política mais dinâmica, desenvolver a infraestrutura de produção, de pós-produção. [Para] Muitos filmes a pós-produção é mais cara do que a produção [...] também incentivar a formação de público, criar o hábito do brasileiro assistir conteúdo nacional. Esse hábito passa por uma política de formação nas escolas das pessoas poderem assistir nas escolas", disse ele, ao acrescentar o subsídio para o ingresso de filme brasileiro como outra estratégia relevante.
Santos citou ainda que a política pública para o setor pode incluir investimento em intercâmbio com profissionais do exterior.
"Isso decorre da própria dinâmica de funcionamento das agências de regulação do país, cuja nomeação se dá a partir da presidência da República. Esse é o nó fundamental, mas há outros. A própria ignorância do governo em relação ao problema, fruto de atraso administrativo, tem prejudicado avanços. O cinema precisa ultrapassar a fase de coronelismo e azeitar os mecanismos de funcionamento espontâneo", opinou.
A indústria cinematográfica nacional para se desenvolver precisa "se afastar dos lobbies", avaliou Medeiros.
"Procurar os setores produtivos em sua ampla representatividade - atores, produtores, cineastas, cinegrafistas, iluminadores, contrarregras. Criar instâncias de deliberação que não se submetam à lógica política, à lógica de ocasião. Afastar-se da compra de apoio nos sindicatos e na imprensa, e buscar os problemas reais e as soluções reais".
Emprego e renda
Ambos os especialistas também destacaram que para além do soft power, investir em cinema também traz frutos econômicos diretos para o país.
Medeiros deu como exemplo o filme "Ainda Estou Aqui" que já faturou mais de US$ 5 milhões (cerca de R$ 30 milhões) em bilheterias dos Estados Unidos e US$140 milhões (cerca de R$ 827 milhões) no planeta todo.
"Para se ter uma ideia, a exportação de vinhos brasileiros foi de cerca de US$ 13 milhões (cerca de R$ 76 milhões) no ano passado", comentou ele.
Santos acrescentou:
"Sétima Arte, assim como toda a cadeia produtiva do audiovisual, que aí inclui streaming, televisão aberta, televisão por assinatura, séries, filmes, e também os games, os jogos eletrônicos, elas podem gerar também muito emprego e renda".
BRICS e Cinema Brasileiro
Ambos os entrevistados também destacaram que o BRICS, agrupamento de países emergentes criado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e que, hoje, inclui também Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Indonésia, também pode ser ferramenta para alavancar o cinema brasileiro.
"Possibilidades para além do eurocentrismo e da hegemonia estadunidense. Mas sempre sem nos fecharmos”, comentou Santos. "Além de ampliar as possibilidades de fora, as barreiras de mercado, há capital disponível na China para investimentos. E o BRICS é um mercado promissor e que tende a crescer até mais, com esse fechamento dos EUA no segundo mandato do Donald Trump. A CPLP [Comunidade dos Países de Língua Portuguesa] também pode ajudar a expandir o conteúdo nacional pela lusofonia", completou.
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