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Trump manterá Copa do Mundo, mas poderá dispensar México e Canadá, diz analista

Sputinik Brasil 06/02/2025
Trump manterá Copa do Mundo, mas poderá dispensar México e Canadá, diz analista
Foto: © AP Photo / Evan Vucci

Donald Trump usa réplica da taça da Copa do Mundo de Futebol para ameaçar Canadá e México a perderem o direito de sediar o evento junto com os EUA em 2026. Saiba como a crise entre os vizinhos da América do Norte poderá impactar a Copa e se torcedores latino-americanos conseguirão vistos para comparecer ao megaevento da FIFA.

O presidente dos EUA, Donald Trump, usou uma réplica da taça da Copa do Mundo para lembrar seus vizinhos Canadá e México do compromisso que assumiram com os EUA para sediar o megaevento da FIFA em junho de 2026.

Após repetidas ameaças comerciais feitas contra Canadá e México, Donald Trump estipulou o prazo de um mês para que os seus vizinhos adotem suas exigências e evitem a imposição de pesadas tarifas alfandegárias.

Durante a assinatura de decreto sobre o caso, o escritório de Donald Trump foi decorado com uma réplica da famosa taça da Copa do Mundo. A réplica do troféu foi interpretada como um sinal dos EUA aos seus vizinhos de que a realização conjunta da Copa do Mundo pode estar em risco.

O presidente dos EUA, Donald Trump, assina ordem executiva sobre Canadá e México com a réplica da taça da Copa do Mundo ao fundo, em 4 de fevereiro de 2025, em Washington, EUA
O presidente dos EUA, Donald Trump, assina ordem executiva sobre Canadá e México com a réplica da taça da Copa do Mundo ao fundo, em 4 de fevereiro de 2025, em Washington, EUA

Apesar da iniciativa conjunta, os EUA receberão 78 dos 104 jogos do evento e poderiam organizar o torneio sozinhos, disseram especialistas em sociologia e geopolítica esportiva ouvidos pela Sputnik Brasil.

A realização da candidatura conjunta com México e Canadá foi um instrumento usado pelos EUA para reduzir a oposição internacional à sua candidatura, disse o pós-doutor em Sociologia do Esporte pela Universidade do Porto e professor associado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP), Marco Bettini.

"Os EUA copiaram o modelo de sede conjunta proposto por Espanha, Portugal e Marrocos, porque precisavam angariar outros elementos à sua candidatura e afastar a resistência antiamericana na comunidade mundial", disse Bettini à Sputnik Brasil. "Incluir o México e o Canadá foi uma jogada de mestre, já que eles não sofrem oposição por parte dos outros países."

Segundo Bettini, os EUA contam com o auxílio de seus vizinhos para empreender o chamado "sport washing" ("lavagem esportiva"). A prática se refere à utilização de grandes eventos esportivos para melhorar a imagem do país no exterior, ofuscando a sua atuação internacional controversa.

O presidente da FIFA, Gianni Infantino, à esquerda, fala com o presidente Donald Trump enquanto caminham no gramado sul da Casa Branca, em setembro de 2019, Washington, EUA (foto de arquivo)
O presidente da FIFA, Gianni Infantino, à esquerda, fala com o presidente Donald Trump enquanto caminham no gramado sul da Casa Branca, em setembro de 2019, Washington, EUA (foto de arquivo)

A estrutura necessária para receber a Copa, que agora conta com 48 equipes, ficou tão complexa, que poucos países teriam a capacidade de absorver o evento sozinhos, disse o doutor em Ciências do Esporte e Motricidade Humana pela Université de Paris-11, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), César Teixeira Castilho.

"O novo formato facilita a candidatura de países que não estejam com a infraestrutura pronta. Os gastos para receber esses eventos são muito elevados, e existe uma diminuição no número de cidades candidatas", disse Castilho à Sputnik Brasil. "A candidatura conjunta também diminui a pressão sobre a FIFA para escolher somente um país-sede."

Por outro lado, a realização de eventos em vários países gera aumento do custo de transporte para o torcedor, "o que elitiza ainda mais esse tipo de megaevento", considerou Bettini.

Troféu exibido no gramado antes da partida final da Copa do Mundo de futebol entre Argentina e França no Estádio Lusail em Lusail, Catar, em 18 de dezembro de 2022 (foto de arquivo)
Troféu exibido no gramado antes da partida final da Copa do Mundo de futebol entre Argentina e França no Estádio Lusail em Lusail, Catar, em 18 de dezembro de 2022 (foto de arquivo)

Do ponto de vista de infraestrutura, os EUA teriam condições de receber o evento sem o apoio de Canadá e México. Na estrutura atual, a Copa será celebrada sobretudo nos EUA, que também sediará a partida final do torneio, na cidade de Nova York.

Tapetão dos EUA contra o BRICS

A escolha dos EUA como sede da Copa vem após década na qual países do BRICS dominaram a recepção de megaeventos. O ciclo iniciado pela África do Sul, que recebeu a Copa do Mundo de 2010, foi seguido pelo Brasil, com a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

A Rússia, por sua vez, recebeu não só a Copa do Mundo de 2018, mas também os Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi, em 2014. Já a capital chinesa Pequim foi a primeira cidade da história a receber os Jogos Olímpicos de Verão, em 2008, e de inverno, em 2022.

"Ainda devemos nos lembrar da Índia como anfitriã dos Jogos da Commonwealth de 2010 que, apesar de ser pouco conhecido no Brasil, é o terceiro megaevento mais relevante da atualidade", notou Bettini. "Essa sequência de protagonismo de países do BRICS fez os EUA reagirem e voltarem a atuar como país anfitrião de grandes eventos", disse Bettini.

De acordo com o professor da UFMG Castilho, após repetidas candidaturas malsucedidas dos EUA para receberem eventos, a Justiça norte-americana fez uma investida legal contra a FIFA, levando à queda de seu então diretor, Joseph Blatter.

Talismãs da Olimpíada na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos em Sochi, Rússia, 23 de fevereiro de 2014
Talismãs da Olimpíada na cerimônia de encerramento dos Jogos Olímpicos em Sochi, Rússia, 23 de fevereiro de 2014

"As denúncias que levaram à queda de Blatter foram feitas a partir do sistema judiciário dos EUA, que alegaram competência, afirmando que operações financeiras teriam sido feitas em instituições norte-americanas", lembrou Castilho. "Como os EUA não têm o futebol jogado, a técnica ou uma seleção de destaque, eles sempre tratam de futebol através da lógica política."

A investida judicial contra Blatter acusou a FIFA de ter corrompido o seu processo de seleção de países-sede, em particular durante a escolha do Catar como anfitrião da Copa do Mundo de 2022.

Então presidente da FIFA, Joseph Blatter, anuncia o Catar como sede da Copa do Mundo de 2022, durante cerimônia em Zurique, Suíça, em 2 de dezembro de 2010 (foto de arquivo)
Então presidente da FIFA, Joseph Blatter, anuncia o Catar como sede da Copa do Mundo de 2022, durante cerimônia em Zurique, Suíça, em 2 de dezembro de 2010 (foto de arquivo)

"Mesmo assim, não podemos esquecer que, quando os EUA exploram a questão do futebol, é porque tem objetivos globais, e não locais, já que o futebol por lá não é tão destacado", disse Castilho.

De fato, o futebol não está entre os esportes mais apreciados pelos norte-americanos. O futebol americano, tanto em sua liga profissional NFL quanto no modelo universitário, domina a audiência esportiva do país. O basquete e o beisebol também se destacam, com o futebol feminino e masculino amargando o quarto lugar.

Jogo de futebol americano da liga profissional NFL entre o Miami Dolphins e o Houston Texas, em 15 de dezembro de 2024, em Houston, Texas, EUA.
Jogo de futebol americano da liga profissional NFL entre o Miami Dolphins e o Houston Texas, em 15 de dezembro de 2024, em Houston, Texas, EUA.

"Os EUA querem desenvolver o futebol nacional e vão realizar o seu primeiro campeonato de clubes propriamente dito neste ano, aproveitando a presença do [jogador argentino Lionel] Messi no país", disse Bettini. "Mas, do ponto de vista de bilheteria, os EUA não precisam de Canadá e México para encher os estádios durante a Copa."

O jogador argentino, Lionel Messi, durante partida amistosa do seu atual time norte-americano, Inter Miami CF, em Hong Kong, em fevereiro de 2024
O jogador argentino, Lionel Messi, durante partida amistosa do seu atual time norte-americano, Inter Miami CF, em Hong Kong, em fevereiro de 2024

Após a investida legal contra os dirigentes da FIFA, os EUA emplacam não só a sua candidatura a receber a Copa do Mundo, mas também a cidade de Los Angeles como sede dos próximos Jogos Olímpicos de Verão de 2028.

Retorno à diplomacia esportiva

A volta dos EUA aos megaeventos ocorre após o hiato gerado pelo ataque às torres gêmeas, em 2001. Por considerações de segurança, os EUA passaram a limitar a entrada de estrangeiros em seu território e passou a considerar megaeventos esportivos empreendimentos arriscados.

Além disso, a queda na qualidade da infraestrutura de cidades norte-americanas fez com que fossem preteridas em processos seletivos. A cidade de Chicago, por exemplo, foi considerada menos apta a receber megaeventos do que o Rio de Janeiro, durante a seleção para a cidade-sede das Olimpíadas de Verão de 2016, lembrou Bettini.

Arquibancadas do circuito de canoagem slalom preparadas para os Jogos Olímpicos de 2016, sediados no Rio de Janeiro, Brasil
Arquibancadas do circuito de canoagem slalom preparadas para os Jogos Olímpicos de 2016, sediados no Rio de Janeiro, Brasil

"Outro obstáculo é a crescente oposição da opinião pública à realização de megaeventos. Hoje sabemos que os gastos são realmente muito altos, e o efeito positivo nas economias locais é momentâneo", disse Bettini. "Tentativas de países como Suécia, Noruega, EUA e Bélgica a se candidatarem a grandes eventos foram rechaçadas pela população do próprio país."

Vistos para torcedores

Ainda durante seu primeiro mandato, Trump prometeu à FIFA que garantiria que todos os atletas, funcionários e torcedores interessados em acompanhar o torneio teriam acesso aos EUA "sem discriminação".

"Uma das exigências básicas da FIFA para os países-sede é que a entrada seja livre", disse Castilho. "Claro que o país pode exigir que o torcedor mostre seu ingresso, por exemplo. Mas é necessário garantir que os fãs possam comparecer ao evento."

Faltando pouco menos de 500 dias para o início da Copa de 2026, cidadãos de países como Colômbia, Peru, Turquia, Honduras, Emirados Árabes Unidos e Índia podem já não ter tempo hábil para receber seus vistos, de acordo com estimativas do governo norte-americano sobre o tempo de espera para a emissão de vistos de turismo.

A emissão de vistos para latino-americanos pode ficar ainda mais demorada, considerando a inclusão de cartéis de drogas regionais na lista de organizações terroristas dos EUA. De acordo com a lei interna do país, os EUA não devem admitir a entrada de pessoas suspeitas de fazerem parte de organizações "designadas como terroristas".

Os cidadãos colombianos se encontram em situação particularmente difícil. Após disputa com o presidente colombiano Gustavo Petro, Trump suspendeu temporariamente a emissão de vistos em seu consulado em Bogotá, que agora demanda 700 dias para emitir vistos de turista.

O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, discursa para apoiadores durante um comício por suas reformas propostas na praça Bolívar, em Bogotá, Colômbia, 19 de setembro de 2024
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, discursa para apoiadores durante um comício por suas reformas propostas na praça Bolívar, em Bogotá, Colômbia, 19 de setembro de 2024

Trump ainda poderá retomar sua prática de emitir proibição de viagem a cidadãos de países inteiros, como fez com Irã, Somália e Sudão durante seu primeiro mandato. Além disso, o centro de emissão de vistos de Moscou, na Rússia, também se encontra fechado, o que dificultará a presença de torcedores russos no torneio.

"Sediar a Copa do Mundo é desafiador, já que a FIFA exige que o país modifique suas leis internas para poder receber o evento. Na política de vistos, é a mesma coisa: o país precisa modificar suas leis para garantir o acesso amplo aos organizadores, atletas e torcedores", explicou Castilho.

Apesar de a FIFA conseguir manter a sua autoridade durante negociações com países-sede como o Brasil e a África do Sul, não está claro se conseguirá frear Trump, caso os EUA queiram desonrar alguns compromissos assumidos com a organização, considerou Castilho.

O presidente da FIFA, Gianni Infantino, fala com o presidente dos EUA, Donald Trump, no gramado sul da Casa Branca, em 9 de setembro de 2019, Washington, EUA (foto de arquivo)
O presidente da FIFA, Gianni Infantino, fala com o presidente dos EUA, Donald Trump, no gramado sul da Casa Branca, em 9 de setembro de 2019, Washington, EUA (foto de arquivo)

Ambos os especialistas acreditam que Trump não abrirá mão da realização da Copa do Mundo. No entanto, ele poderá reduzir o acesso de estrangeiros ao evento e, em um cenário mais drástico, optar por receber o evento sem o apoio de seus vizinhos México e Canadá.

"Após termos realizados as Olimpíadas de Tóquio em meio a uma pandemia terrível, pela primeira vez rompendo o ciclo olímpico de quatro anos, vemos que realmente a ideia é realizar esses eventos a qualquer custo, a despeito da seriedade dos eventos ocorrendo no mundo. A ideia é mostrar que o show tem que continuar", concluiu Bettini.