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Em ‘V13’, Emmanuel Carrère acompanha julgamento histórico de atentados em Paris: ‘Queria entender o que os acusados tinham na cabeça’

Processo dos ataques terroristas que fizeram130 mortos em 2015 durou quase um ano

Agência O Globo - 05/10/2024
Em ‘V13’, Emmanuel Carrère acompanha julgamento histórico de atentados em Paris: ‘Queria entender o que os acusados tinham na cabeça’
Foto: Reprodução / internet

Há julgamentos e julgamentos. O que levou à Justiça os acusados de matarem mais de 130 pessoas nos , está na segunda categoria. Por dez meses, entre 2021 e 2022, o processo reuniu centenas de testemunhas e dezenas de advogados para reviver os ataques do Estado Islâmico, que deixaram um rastro de fuzilamentos e atentados suicidas em locais emblemáticos da capital francesa, como a casa de shows Bataclan e o Stade de France.

Diddy:

João do Rio:

Entre os que acompanharam as audiências de perto estava , de 66 anos, uma das vozes mais originais da literatura contemporânea. Autor de obras que renovaram a não-ficção, como “Outras vidas que não a minha” e “Ioga”, o francês conta o que viu e ouviu no recém-lançado “V13”. A obra, que reúne textos publicados no Le Nouvel Observateur, segue a tradição francesa da crônica judicial, explorada por autores como André Gide e Jean Giono, mas pouco difundida no Brasil.

Carrère mistura reportagem, ensaio e crônica impressionista, capturando a pesada atmosfera do tribunal. Analisa com distanciamento o “teatro” dos magistrados e o discurso doutrinador dos poucos terroristas que sobreviveram no ataque, mas também comove-se com a força dos testemunhos das vítimas. Ao mesmo tempo, volta seu olhar para os bastidores do tribunal: as conversas nos intervalos das audiências, a movimentação dos jornalistas e outros flashes roubados que revelam os vínculos entre quem participou dessa dolorosa experiência.

Em entrevista por vídeo, o autor, que perdeu um amigo em outro atentado terrorista no mesmo ano (o massacre na redação do jornal satírico Charlie Hebdo), conta ao GLOBO às motivações que o levaram ao projeto do livro.

A cobertura do julgamento não partiu de uma encomenda do jornal, foi uma decisão sua. Logo, porém, você percebeu que não sabia bem a razão de estar ali. Agora já sabe?

Em primeiro lugar, havia meu interesse pelo funcionamento da Justiça. Os julgamentos são fascinantes; é uma forma de teatro humano. Além disso, tenho interesse pelas religiões, e aqui estávamos falando da mutação patológica de uma religião. Acho que, no fundo, eu queria entender o que os acusados tinham na cabeça. Por fim, havia também o interesse por experiências humanas muito extremas. Eu sabia que ouviria relatos de pessoas que viveram coisas inacreditáveis. Profissionalmente, foi uma experiência muito gratificante.

Em um momento do livro, você menciona que, durante o julgamento dos atentados do Charlie Hebdo, foram mostradas imagens aterrorizantes dos assassinatos, traumatizando muitos presentes. Por causa disso, a corte não repetiu o procedimento no julgamento do V13. A sociedade francesa está aprendendo a lidar melhor com o assunto?

De maneira geral, o julgamento do V13 foi marcado por uma dignidade incontestável. Há quem diga foi quase “esterilizado”, no sentido de que houve um grande cuidado em não ferir a sensibilidade das pessoas. Mas, no fundo, não acho que isso tenha sido um problema. Os relatos dos sobreviventes eram tão fortes e de um impacto emocional tão grande, que não senti falta de imagens ou cenas terríveis como no julgamento de Charlie Hebdo. Houve uma preocupação constante em não fazer desse julgamento algo “chocante” ou sensacionalista.

Você destaca o sentimento de comunidade que, ao longo do processo, acaba se formando entre pessoas tão diversas...

De fato, em qualquer julgamento, forma-se uma espécie de pequena sociedade. O que achei notável foi o alto nível de consciência cívica demonstrado por muitos familiares de vítimas e sobreviventes. Muitos conseguiram ver os advogados de defesa dos acusados como pessoas honradas, sem misturá-los aos crimes de seus clientes. Não estou dizendo que foi unanimidade. Mas, em geral, havia um alto grau de civismo, como quando uma mulher, Nadia, que testemunhou longamente, terminou dizendo: “Agora, advogados, façam seu trabalho. E façam bem.”

Algumas comunidades podem se revelar artificiais, como a dos falsos amigos de vítimas que usam um luto imaginário para ganhar notoriedade na mídia...

Sim, claro. Houve momentos em que o lado midiático parecia vulgar. O julgamento, no entanto, foi conduzido de maneira bastante calma e com dignidade. Era para ser exemplar, histórico, algo assim. Uma superprodução. No início, achava isso um pouco engraçado. Parecia-me virtuoso demais. E, na verdade, penso que esse caráter exemplar realmente aconteceu. Porque foi um grande sucesso na demonstração do funcionamento da Justiça. Claro, esses sucessos são excepcionais, porque infelizmente a Justiça não funciona assim sempre.

Foi uma terapia coletiva? Um processo de cura?

De cura, não sei. Em todo caso, um advogado disse algo que achei bastante bonito. Ele dizia que, no fundo, o que as pessoas faziam eram depoimentos. E o significado disso é que, em um julgamento, você deposita seu sofrimento e, em troca, a Justiça é feita. Foi mais ou menos o que aconteceu.

Você já comparou o papel do escritor ao de um torturador, no sentido de controlar o ritmo, provocar e decidir o momento de silêncio. Foi também o caso aqui?

Não... (Longo silêncio.) Diria que não. A questão é como falar dos acusados. Não posso dizer que tinha simpatia por eles. Ou melhor, tinha certa simpatia pelos pequenos. Os pequenos delinquentes que acabaram por acaso se envolvendo com algo muito maior do que eles. Havia até um com quem eu conversava vez ou outra. Eu não era o único a gostar dele, outros torciam para que ele não voltasse à prisão, pois era um pobre coitado.

E em relação aos “grandes”?

Por esses eu não tinha a menor simpatia. Ainda por cima, recitavam uma espécie de catecismo de maneira idiota. Em geral, os assassinos são mais interessantes. Mas, nesse caso, foi o contrário: me interessavam as vítimas, os parentes das vítimas. Havia muitos ali que tinham uma espécie de densidade, que tinham passado por algo que os fazia ter alguma coisa a dizer. Já os acusados não eram lá muito brilhantes.

Você é um escritor dedicado ao que se convencionou chamar de não-ficção. Seus livros trabalham com a realidade. Há hoje um esgotamento da ficção?

Não tenho certeza de que a ficção esteja esgotada. Eu não escrevo romances, mas não acho que o romance esteja morto. Agora, para falar a verdade... não há 50 mil autores de ficção que eu leia. (Pausa.) Veja, sou obrigado a me corrigir: sou mais leitor de não-ficção. E leio principalmente coisas que têm a ver com o que estou trabalhando. Talvez haja de fato um esgotamento da ficção. Mas não tenho uma ideia muito precisa disso.

Julgamentos como o que você viu seriam um espelho para os problemas de um país?

De tempos em tempos, há sempre um grande processo que fascina a França. Atualmente, temos esse processo louco do Dominique Pelicot, sujeito que drogava a mulher para que ela fosse estuprada por outros homens. Todo o país segue essa história, deve durar meses. Um negócio inacreditável.

Não tem interesse em cobrir o julgamento de Pelicot?

Não. Até poderia ter me interessado, mas, por enquanto, está de bom tamanho. Já acompanhei um julgamento por quase um ano, então não vou começar outro tão cedo.

Serviço: ‘V13’. Autor: Emmanuel Carrère. Tradução: Mariana Delfini. Editora: Alfaguara. Páginas: 224. Preço: R$ 86,90.