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População de Jacarta, ex-capital da Indonésia, vive entre mar que sobe e terra que afunda

Extração excessiva dos aquíferos e mudanças climáticas afundam cidade, substituída recentemente como centro político do país por região na selva

Agência O Globo - 25/08/2024
População de Jacarta, ex-capital da Indonésia, vive entre mar que sobe e terra que afunda

Ao celebrar seu Dia da Independência há uma semana, a Indonésia oficialmente também ganhou uma nova capital. Nusantara, que significa “arquipélago” em javanês antigo, fica selva adentro da Ilha de Bornéu e tem como promessa ser um modelo de cidade tecnológica e sustentável para o resto do mundo com florestas protegidas, geração de energia 100% renovável e totalmente neutra em carbono até 2045, ano em que se espera que todas as obras estejam finalizadas. Mas, a 1.200km de distância, do outro lado do Mar de Java, o futuro não parece tão brilhante para a agora ex-capital Jacarta. Poluição crônica, superpopulação, congestionamentos terríveis e graves inundações são apenas alguns dos problemas que seus 11 milhões de habitantes têm como realidade. E nenhum deles representa tanto uma crise existencial quanto a subsidência, termo técnico para dizer que a cidade está afundando. Literalmente.

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Uma série de fatores explica a situação: desde sua formação geológica ao próprio crescimento desenfreado sobre um terreno de sedimentação ainda instável. No entanto, é a extração excessiva de água dos aquíferos a grande responsável por Jacarta começar a colapsar sobre si mesma. A infraestrutura jamais foi concebida para acomodar a explosão de crescimento ao longo das décadas. Com um sistema de abastecimento de água canalizada insuficiente para toda a população, os moradores e, principalmente as indústrias, recorreram à fácil extração de água subterrânea. A prática excessiva levou ao enfraquecimento do solo sob a cidade.

Subsidência cresce

O professor Heri Andreas, da Universidade de Badung, que estuda o assunto há quase 30 anos, explica que a subsidência não ocorre de forma homogênea. Ele pontua que atualmente Jacarta afunda a uma taxa de 1cm a 11cm por ano, mas de 2000 a 2010 esse número chegou a 20cm anuais. Entre 2007 e 2010, especificamente no subdistrito de Muara Baru, no norte da cidade, a média chegou a 26 cm.

— É um processo muito dinâmico em tempo e variado em espaço — explica. — Basicamente a cidade inteira está afundando em diferentes proporções.

Apesar de a situação se estender até o sul, é a zona norte a mais ameaçada. Cerca de 18% da cidade — todas as áreas na região costeira —já se encontram abaixo do nível do mar. Projeções científicas estimam que até 2050 esse número pode chegar a 95%.

Outro fator que deverá ser um agravante é a elevação do nível do mar. Estudos indicam que as águas na costa estão subindo com uma frequência de 6mm ao ano. O número pode parecer insignificante — e, de fato, há outras regiões no mundo com elevações maiores — mas, combinado com uma taxa de subsidência que já chegou a se aproximar do tamanho de uma régua escolar, ganha outra dimensão.

No início dos anos 2000, uma muralha contra o mar, de 2km de comprimento e 2,5m de altura, foi construída em Muara Baru. Para além dela, encontra-se um dos principais símbolos do que o futuro pode significar: alguns resquícios estruturais da Mesquita Wal Adhuna, praticamente toda engolida pelo mar.

Por quanto tempo a muralha seguirá cumprindo sua função é incerto. Numa caminhada rápida ao longo dela é possível observar, e sentir, como o constante colidir das ondas vem erodindo partes de sua estrutura inferior. Em dias de maré alta, as águas quase alcançam seu topo.

Por sua vez, o subdistrito de Muara Angke não tem nenhum artíficio para conter o mar. É uma das principais zonas pesqueiras da cidade, e qualquer projeto semelhante — ao menos sem um planejamento adequado de acesso às águas — seria a ruína para uma área já empobrecida. Como resultado, a vida marcada por inundações se normalizou. E a subsidência também se torna cada vez mais visível, com casas já abandonadas que praticamente afundaram na terra, e outras em que a janela encontra-se a alguns centímetros do chão.

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Vilarejos urbanos

Os dois subdistritos são compostos por diversos kampungs — “vilarejos urbanos” — e se assemelham às favelas. Sua origem não difere do processo de favelização de nenhuma outra grande cidade no mundo. Em busca de melhores condições de vida, moradores criaram assentamentos, construíram sozinhos casas e comércios que foram se transformando em comunidades. São locais caracterizados pela alta concentração populacional, por construções inadequadas e uma limitação de serviços básicos como água potável, saneamento, coleta de lixo, pavimentação e iluminação pública.

Para o resto da cidade, sua extrema pobreza é vista com preconceito. Aos olhos do governo, são assentamentos informais, nos quais a maioria de seus habitantes sequer teria o direito de estar ali. Por isso, mesmo entrincheiradas entre o mar que sobe e a terra que afunda, a maior batalha que a população local tem enfrentado é o próprio direito de permanecer onde vivem.

Muitas vezes o despejo ocorre justamente porque as áreas têm um grande potencial comercial. É o caso de Muara Angke. Estar próxima do mar, mesmo com todos os problemas envolvidos, atrai interesses financeiros, em especial na construção civil. Mas após décadas se formando como uma comunidade cuja atividade pesqueira é importante, não apenas para a economia local, mas também para outros pontos da cidade, sair dali significaria recomeçar tudo do zero.

Esse é um dos motivos, explica Gugun Muhammad, líder comunitário do Consórcio dos Pobres Urbanos (UPC, na sigla em inglês), pelo qual é preciso cuidado ao falar com a população local sobre subsidência ou mudanças climáticas. Há o temor de que isso possa virar argumento, usando a própria segurança dessas pessoas contra elas, para enfim conseguir removê-las dessas áreas.

— A maior preocupação é com o despejo. As inundações tudo bem, a gente lida. Temos enchentes todos os anos e tentamos nos adaptar e continuar vivendo com elas — diz.

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Estigma e despejos

Nos últimos anos, diferentes organizações começaram a se unir à população local para evitar os despejos. Em 2015, o Centro de Estudos Urbanos Rujak ajudou não apenas a reverter um processo de retirada da população, mas conseguiu que as áreas de diferentes kampungs fossem revitalizadas.

— Por conta do estigma, com nossa longa história de sempre sair perdendo e de não acreditar que podemos fazer algo melhor, as pessoas acabam não se mobilizando — explica Muhammad. — Tem muita gente com o mesmo problema, só que não trabalham juntos. Mas, se nos juntarmos, é como estar com outro amigo sofrendo. É melhor do que sofrer sozinho.