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Arrigo Barnabé: 'Dinheiro não ganhei, mas fiz a música que quis'

Aos 72 anos, cantor e compositor celebra o amigo Itamar Assumpção, outro destaque da Vanguarda Paulista, em disco e projeto audiovisual

Agência O Globo - 11/08/2024
Arrigo Barnabé: 'Dinheiro não ganhei, mas fiz a música que quis'
Arrigo Barnabé: 'Dinheiro não ganhei, mas fiz a música que quis' - Foto: Reprodução /Instagran

Arrigo Barnabé aprendeu a fazer feijão e berinjela recheada com Itamar Assumpção (1949-2003). Os dois ícones da Vanguarda Paulista moraram juntos por três anos na década de 1970, numa casa do bairro boêmio do Bexiga, onde dividiam não somente o teto, mas as angústias existenciais e um cotidiano de grana curta.

— Éramos dois médicos e dois monstros — brinca Barnabé, referindo-se ao quarteto formado ainda por Ricardo Rego (Guará) e Rubens Brando (Rubão), à época, estudantes de Medicina. — A gente não bebia. Fumávamos maconha e líamos “As portas da percepção” (de Aldous Huxley). Itamar era careta, ex-jogador de futebol, ficava lá ouvindo as linhas de baixo das músicas do Jimi Hendrix.

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É da alegria de Assumpção, característica que surpreende quem acompanhou um artista famoso por certa melancolia, que Barnabé mais sente falta. Ele revela que, na intimidade, “Itamar era engraçadíssimo”. E também exímio imitador.

É a dor, no entanto, que conduz a maior parte de “Arrigo visita Itamar”, disco e projeto audiovisual lançados anteontem (pela gravadora Atração). Nele, o cantor, compositor e pianista revisita canções do autor de “Nego dito”, junto com a banda Trisca, trio derivado do grupo Isca de Polícia, que acompanhava o homenageado. Algumas delas são “Luz negra”, “Noite torta” e “Mal menor”, que Assumpção costumava cantar para Barnabé, adaptando letra: “Te darei abrigo, se quiser Arrigo/ se for pra brigar por você também brigo/ pra tudo conte comigo”. A escolha pela sofrência é óbvia:

— Itamar não é Jorge Ben, sol, dia, mas o elogio do desespero do melancólico — define Barnabé, que considera este sentimento inerente ao ser humano. — Existir é doer, como diz o poema.

O poema é “Relógio do Rosário”, de Carlos Drummond de Andrade, que Barnabé recita ao fim de “Dor elegante”, parceria de Itamar com Paulo Leminski, que diz: “Sofrer vai ser a minha última obra”:

— Ninguém é imune à dor. Nossos pais vão morrer, um amigo será assassinado, um irmão ficará doente. Você vai se separar ou ter orientação sexual diferente e a sociedade não vai te aceitar. O que não falta é dor e conflito, esta é nossa essência.

Além da obra de Assumpção, o trabalho traz canções de outros autores que ele curtia cantar, como Ataulfo Alves e Nelson Cavaquinho, de quem gravou “Quando eu me chamar saudade”.

— Essa é a cara do Itamar. Fala de flores em vida, e um pouco da nossa condição como artista independente. Sempre tivemos dificuldade com a sobrevivência.

Experimental e popular

Arrigo está falando de dinheiro, já que do reconhecimento da classe ele não tem do que se queixar, garante.

— Ney Matogrosso e Cássia Eller gravaram Itamar. Zélia Duncan fez trabalho só com músicas dele. Há um grande reconhecimento. Mas ficamos marginalizados na grande mídia eletrônica, onde era preciso aparecer para ganhar dinheiro. Conseguimos furar a bolha, apesar do boicote. Bem mais ele que eu... Itamar dizia: “Arrigo, você que é experimental, eu sou popular”.

Barnabé sente-se feliz com o que experimentou. Não foi pouco. “Enfant terrible” da música brasileira, ele se firmou como um dos artistas mais criativos e inquietos da sua geração. Fez uma música original, pautada pelo atonalismo e pelo serialismo dodecafônico que incorporava elementos do rock, do canto falado e da estética dos quadrinhos. Não à toa, é citado por Caetano Veloso na música “Língua” (parceria com Elza Soares, gravada no disco “Velô”, de 1984).

— É algo honroso para mim. Caetano é uma das razões de eu ser compositor. Quando o conheci, disse: “Você tem feito várias músicas em que fala o nome das pessoas...” E ele: “Vou fazer uma com o seu”. Quando fez, eu estava lotando shows no Sesc Pompeia, no auge, aparecia mais na mídia impressa que o Chico Buarque, só dava eu! — brinca.

Barnabé gravou discos antológicos como “Clara Crocodilo” (1980) e “Tubarões Voadores” (1984). Bancou a liberdade de fazer sua arte mesmo diante do regime militar.

— O elogio à marginalidade do (Helio) Oiticica pegou muito a nossa turma. Celebrar os marginais era transgressor, a maneira de ser subversivo sem bater de frente.

Mesmo assim, não escapou da censura com a canção “Orgasmo total”.

— Imagina falar “orgasmo” numa música? Achavam absurdo, incomodava mais que alusões ao regime, como algumas do Chico (Buarque) e do (Geraldo) Vandré que deixaram passar — lembra. — Se fôssemos para o lado político ideológico, íamos presos, então, partíamos para a subversão dos costumes. Acreditávamos que provocava mudança. Mas incomodava, né, tanto que expulsaram tropicalistas.

Mexer com a pauta de costumes azucrina conservadores até hoje, diz Barnabé:

— Mas agora governos de extrema direita, embora apoiados por grande parcela da sociedade, têm que respeitar liberdades democráticas. Naquela época, podiam te matar.

Aos 72 anos, o músico segue na luta para pagar boleto.

— É difícil. Tem as dívidas, o negócio de nunca estar no azul. Mas não me queixo. Fiz mais que esperava. Não consegui ganhar dinheiro, mas fiz a música que eu quis, diferente, tenho público razoável, me sinto bem-sucedido. Claro que não ganhar grana é chato porque a gente quer ajudar a mãe, viver com mais conforto. Mas eu me viro. É a vida. E, nessa altura, está tudo bem — diz ele, que faz o show “Sertanejo lisérgico” com a cantora Tetê Espíndola dia 28 de setembro, em Londrina.