Internacional

'Bem-vindo ao inferno': Relatório descreve abuso sexual, agressões e humilhação contra detentos palestinos em prisões e centros israelenses

Organização B'Tselem lista pelo menos 66 mortes de presos desde o início da guerra em Gaza e a transformação de unidades em campos de tortura sob a direção de Itamar Ben-Gvir

Agência O Globo - 06/08/2024
'Bem-vindo ao inferno': Relatório descreve abuso sexual, agressões e humilhação contra detentos palestinos em prisões e centros israelenses
Relatório descreve abuso sexual, agressões e humilhação contra detentos palestinos em prisões e centros israelenses - Foto: Reprodução/internet

Relatório da organização israelense de direitos humanos B'Tselem, divulgado na segunda-feira, denunciou a prática de abuso sexual, violência, torturas físicas e psicológicas, fome, humilhação, e falta de atendimento médico, contra dezenas de palestinos detidos em prisões e centros de detenção israelense desde o início da guerra na Faixa de Gaza, em outubro. Sob o título de "Bem-vindo ao inferno", o relatório listou pelo menos 66 mortes de detentos nesse período e destacou que as prisões se tornaram efetivamente campos de tortura sob a direção do ministro de Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, um extremista de direita.

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A ONG israelense ouviu 55 palestinos detidos em prisões e centros de detenção — segundo dados do Serviço Prisional divulgados pela organização HaMoked - Centro de Defesa do Indivíduo, em 1º de agosto 9.881 palestinos estavam detidos em prisões israelenses, enquanto 3.432 eram detidos administrativos sem acusação ou julgamento, e 1.584 estavam detidos sob a Lei de Detenção de Combatentes Ilegais, que permite a detenção de civis por até 45 dias sem um mandado de prisão. Dos 55, 30 eram moradores da Cisjordânia e Jerusalém, 21 eram de Gaza 4 são cidadãos israelenses.

A ONG destacou que a maioria foi libertada sem indiciamento. Entre as mortes, 48 foram prisioneiros de Gaza que morreram em instalações de detenção do Exército israelense, e 12 sob custódia do Serviço Prisional.

Um dos depoimentos mais chocantes, citado pelo jornal israelense Haaretz, relata um abuso sexual e agressões (os detalhes podem ser perturbadores para alguns leitores). A.H, como foi identificada a vítima no documento, é morador de Hebron, na Cisjordânia, e pai de um menino. Ele contou que um dia membros da Unidade de Resposta Rápida (conhecida como Keter) jogaram água no chão e ordenaram que os presos saíssem de suas celas. Segundo A.H, eles tiveram as mãos amarradas atrás das costas e foram arrastados para o corredor.

— Da cela, ouvi o choro e os gritos dos detentos que foram levados antes de mim e espancados — disse, descrevendo ter visto seus colegas de cela "completamente nus e sangrando", jogados uns sobre os outros, ao chegar no refeitório. A.H foi então despido por dois guardas. — Eles me jogaram em cima dos outros prisioneiros. Um deles trouxe uma cenoura e tentou enfiá-la em meu ânus. Enquanto ele tentava enfiar a cenoura, alguns dos outros me filmaram com seus celulares. Eu gritava de dor e horror. A situação continuou assim por cerca de três minutos.

Golpes nas genitálias e ataques de cães

O documento trouxe ainda depoimentos de guardas espremendo e espancando os órgãos genitais dos detentos, o uso de cassetetes, aparelhos de metal, spray de pimenta, bombas de efeito moral, tasers contra eles, fotografias feitas de prisioneiros nus, além de revistas corporais violentas. Há ainda ordens para amaldiçoar suas próprias mães, o Hamas e seu líder Yahya Sinwar, além de beijar a bandeira e cantar o hino de Israel.

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Sami Khalili, de 41 anos, descreveu à organização israelense uma dessas revistas. Detido na prisão de Ketziot, ele conta ter sido levado com outros presos para "uma sala que tinha muitas roupas, sapatos, aneis e relógios espalhados."

— Fomos despidos e até tivemos que tirar nossas roupas íntimas. Fomos revistados com um detector de metais portátil. Eles nos forçaram a abrir as pernas e sentar meio agachados. Então eles começaram a nos bater em nossas partes íntimas com o detector. Eles nos deram uma chuva de golpes. Então eles nos ordenaram a saudar uma bandeira israelense que estava pendurada na parede — relembrou, dizendo que, quando se recusou a saudar a bandeira, foi espancado e chutado no estômago por soldados do Keter.

Os golpes na barriga levaram Khalili a vomitar e cair no chão, sendo atingido novamente na sua genitália.

Outro detido contou à B'Tselem sobre ataques de cães enquanto eles seguiam para o ônibus da prisão. Morador da vila de Kharas, na Cisjordânia, Thaer Halahleh, relatou que cada membro da unidade de transporte de prisioneiros segurou um detento, enquanto um outro segurava um cachorro pela guia e deixava atacar os palestinos — episódio que descreveu como "assustador". Segundo o homem, que é morador da vila de Kharas, na Cisjordânia, os animais estavam com focinheira de metal, e o guarda "ficava afrouxando a guia e depois puxando-a de volta".

— Toda vez que eu tentava me afastar do cachorro, o guarda me chutava forte nas pernas, e outro me agarrava pelos testículos e me empurrava para frente com força enquanto me xingava. Eu estava muito bravo e me senti extremamente humilhado na frente dos outros detentos — relembrou.

'Decisão mais difícil da minha vida'

Os detentos também relataram a falta de tratamento médico destinada aos feridos ou doentes. Um deles, Sofian Abu Selah, de 43 anos, disse ter tido a perna amputada por falta de tratamento. Também vítima de abuso sexual na prisão, o homem contou que, ao ser preso em Gaza, foi transferido para uma unidade de detenção improvisada, onde foi espancado com um cassetete e chutado durante um interrogatório. Foi posto em um caminhão com outros 80 detentos e levado para a base militar de Sde Teiman, em no deserto de Neguev.

Ele contou que, no primeiro dia de detenção, teve apenas duas horas de sono. Detentos libertados contaram que, entre os métodos de privação de sono, estavam deixar as luzes nas celas acesas a noite toda ou música alta, tocada pelos guardas. Selah disse que, dois dias depois, começou a sentir dor e inchaço na perna e pediu para chamar um médico.

Um guarda chegou a tirar a foto da sua perna duas vezes para mostrar à médica, mas ela não respondeu. Ele contou ter tido dor "por uma semana" e febre alta. Foi transferido para um hospital, onde aguardou por duas horas por um médico — o tempo todo com as mãos e os pés algemados, além de ter sido vendado. O detento disse ter perdido a consciência e que, quando acordou, foi informado de que havia passado por uma cirurgia, mas não sabia quem falava e não recebeu detalhes sobre o tratamento. Foi transferido outra vez para um outro hospital, onde um médico informou que ele deveria decidir se queria ter a perna amputada ou morrer.

— Foi a decisão mais difícil da minha vida, decidir amputar minha perna. Fiquei chocado, especialmente porque estava sozinho e não havia ninguém da família comigo para consultar — disse Selah, afirmando que foi levado para a sala de cirurgia também algemado e vendado.

Segundo o detento, ele ficou no hospital por mais cinco dias, onde suas bandagens foram trocadas apenas uma vez. Ao voltar para o centro de detenção, ele conta ter sido punido pelos soldados, que exigiram que ele mantivesse o equilíbrio com sua única perna por 30 minutos. Selah foi libertado em abril e voltou para Gaza.

Falta de higiene e ameaças

O documento aborda ainda as péssimas condições higiênicas nas celas, falta d'água, acesso limitado aos chuveiros e o confisco de produtos de higiene e limpeza. Segundo Muhammad Srur, de 34 anos, "não havia sabão, xampu, escovas de cabelo ou cortadores de unha" e que receberam xampu pela primeira vez apenas um mês e meio de sua chegada.

— Sentíamos que nossos corpos estavam apodrecendo com sujeira. Alguns de nós tinham erupções cutâneas — relembrou.

Segundo os depoimentos, a quantidade de alimentos também caiu drasticamente desde o início do conflito, em 7 de outubro, e que a qualidade era ruim. Quem reclamasse, estava sujeito à punição. As celas também estavam superlotadas. Muitos detentos contaram ainda que não tiveram direito a um advogado durante o período na prisão e nos centros de detenção, e que alguns descreveram ter sido submetidos à violência à caminho de audiências (realizadas virtualmente) e que receberam ameaças dos guardas para não delatar.

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Procuradas pelo jornal israelense Haaretz, as Forças Armadas de Israel afirmaram que operam "de acordo com a lei israelense e a lei internacional, protegendo os direitos dos indivíduos mantidos em suas instalações de detenção", e que qualquer abuso e tortura, seja na detenção, seja durante interrogatório, eram "estritamente proibidos". Também disse que investiga "minuciosamente alegações específicas de abuso de detentos" e rejeita "categoricamente as alegações de abuso sistemático" em suas instalações.

Já o Serviço Prisional de Israel disse que "todos os prisioneiros são mantidos legalmente, e seus direitos básicos são totalmente garantidos por guardas e comandantes treinados e profissionais." Sobre as alegações, afirmou acreditar "que sejam infundadas". O órgão destacou: "Desde o início da guerra, sob a direção do ministro da Segurança Nacional Itamar Ben-Gvir, as condições para os prisioneiros de segurança foram reforçadas, e as condições anteriormente melhoradas para os terroristas foram revogadas."