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Análise: com Walz de vice, Kamala parte para ataque total contra Trump

Orador sem papas na língua, que carimbou adversários como "esquisitões", governador do Minnesota era favorito da esquerda democrata; vice da vice se apresenta como "americano comum", em contraste com chapa puro-sangue trumpista

Agência O Globo - 06/08/2024
Análise: com Walz de vice, Kamala parte para ataque total contra Trump

O governador Tim Walz é o que, na política americana, se chama de "cão de ataque". Dos muitos significados de sua escolha por Kamala Harris para ser o vice da vice na disputa pela Casa Branca contra a chapa trumpista puro-sangue Donald Trump-JD Vance, o com maior efeito imediato é a senha dada à militância de que nos próximos 90 dias os governistas partirão sem rédeas para a briga com Trump, e na seara populista. Ataque, ataque, ataque.

Com a alcunha de "guerreiro sorridente", Walz se elegeu duas vezes para o governo de Minnesota apresentando-se como cidadão comum, professor secundário, treinador de futebol americano da equipe da escola, veterano da Guarda Nacional, direto, pragmático, "gente como a gente". O raro político bonachão mas ao mesmo tempo imperdoável com o adversário. E, importante: sem papas na língua.

Sua estreia na campanha presidencial este ano se deu em grande estilo. Enquanto a maioria de seus competidores pelo posto, entre eles o governador do estado decisivo da Pensilvânia, Josh Shapiro, oito anos mais jovem do que o político do Meio-Oeste, multiplicavam-se em elogios à ex-senadora da Califórnia, Walz mirou no outro lado da disputa. Foi ele quem carimbou no trumpismo a marca de serem "os esquisitões", que apresentavam aos americanos propostas e mensagens "extremistas", entre elas a sugestão do senador JD Vance de que cidadãos com filhos deveriam ter um peso no voto popular maior do que os solteiros ou casados sem cria.

O imediato "oi?" de Walz para a ideia despropositada tirou, ao menos momentaneamente, o foco de "diferente" da vice-presidente negra, de origem indiana, que fez sua carreira política na ultra-liberal São Francisco. Ele conseguiu algo que os democratas precisam seguir fazendo para ganhar em novembro: mover Kamala para o centro. E agora quem martelava contra um dos "absurdos trumpistas" não era só Jennifer Aniston (que deu um schlap hollywoodiano sem tamanho em Vance), mas alguém que se apresenta como espelho da maioria do país. Viralizou.

Veterano militar, professor secundário, sessentão, cabeleira branca saindo de cena em benefício de crescente careca, sorriso aberto, natural dos cafundós do Nebraska, o político é a cara do Meio-Oeste, região que simboliza a polidez interiorana no imaginário americano. E comanda estado com perfil demográfico ao dos três vizinhos da "muralha azul" que os governistas precisam vencer em novembro: Pensilvânia, Wisconsin e Michigan.

Embora não tenha perfil nacional consolidado, Walz é um campeão dos direitos dos trabalhadores sem diploma universitário da região sem titubear em apoiar temas caros à maioria dos eleitores da região hoje, como o direito ao aborto. E o faz pelo viés de "ataque do Estado à vida do cidadão". Conseguiu ser campeão da esquerda do partido mesmo defendendo o porte de armas e se posicionando no meio, entre as forças internas que pedem regulamentação maior e urgente no setor para evitar os constantes massacres no país e os que cultuam a mentalidade de fronteira, de independência, tão cara a quem vive fora das costas liberais do país.

Um primeiro olhar em suas fotos e pode-se até pensar que Walz é uma repetição do presidente Joe Biden, duas décadas mais novo. A grosso modo, seria como se a chapa Obama-Biden tivesse sido virada ao avesso, mas somente em um olhar mais superficial. Walz não é, para o bem e para o mal, Biden 2.0.

Não deve faltar animação, ousadia e testosterona nos palanques da campanha democrata em que o governador estiver presente, e sem uso de teleprompter. Mas os riscos também aumentam. O veneno político de Walz — que comandou nos últimos anos a poderosa, e rica, associação de governadores democratas, central na distribuição de fundos eleitorais — é temido por seus adversários no Minnesota. Mas também beira o limite do risco político. A própria tirada dos "diferentões" arrepiou veteranos estrategistas democratas que lembraram a declaração da então candidata Hillary Clinton em 2016 de que metade dos eleitores de Trump eram "deploráveis".

Walz, avaliam, passou no limite do sarrafo ao diferenciar militância de líderes da direita. Mas o tiro poderia ter saído pela culatra. Por sua vez, o papo direto com o eleitor, aposta para contrabalançar a inflação dos anos Biden sentida no bolso dos eleitores, e a experiência militar de Walz, podem ser, avaliam, insuficientes para rebater a retórica da invasão dos imigrantes não-documentados, outro pilar da campanha do ex-presidente Trump.

Os estrategistas democratas também não deixaram passar despercebida outra mensagem central da escolha do governador de 60 anos. Walz traz algo que Kamala definitivamente não tem — táticas e movimentos para enfrentar os adversários em seu próprio ringue populista — mas é apenas um ano mais velho do que a vice-presidente. Se Trump, impedido pela Constituição americana de disputar a reeleição se vencer em novembro, sinalizou em JD Vance, de 39, o futuro do Partido Republicano à sua imagem e semelhança, a democrata deixou claro nesta terça-feira que, no lado governista, a próxima década, crê, tem nome e sobrenome. O dela mesmo. Uma prova de confiança em sua liderança e sucesso com potencial de animar ainda mais militância já eletrizada.