Internacional
Troca de prisioneiros entre Rússia e Ocidente 'incluiu' Navalny, enfrentou resistências e manda sinais para o futuro
Aliados do líder opositor acreditam que ele foi morto para que não fosse incluído nas negociações, mantidas ao longo de dois anos

O anúncio da maior troca de prisioneiros entre a Rússia e o Ocidente desde o final da Guerra Fria foi a conclusão de um processo longo, conduzido ao longo da guerra na Ucrânia, e que envolveu — direta e indiretamente — o líder opositor Alexei Navalny, morto em fevereiro em uma prisão na Sibéria. Ao mesmo tempo em que a lista inclui desafetos do regime, como o jornalista Vladimir Kara-Murza, ela abre caminho para o regresso de criminosos acusados de agir a mando do Kremlin, e pode trazer sinais para a política e a diplomacia no futuro próximo.
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De acordo com investigação do jornal alemão Zeit, as conversas começaram ainda em 2022, ano em que a Rússia invadiu a Ucrânia. Nesta época, os EUA abordaram autoridades da Alemanha sobre a possibilidade de uma troca de prisioneiros, apresentando uma lista de 12 nomes que os russos queriam ver livres, incluindo Vadim Krasikov, condenado à prisão perpétua pelo assassinato de um militante checheno em um parque de Berlim, em 2019.
O Kremlin jamais assumiu a responsabilidade pelo ataque — seguindo um modus operandi que precede o presidente russo, Vladimir Putin, em algumas décadas —, mas os promotores alemães apontaram para uma série de evidências que ligavam Moscou ao crime. A vítima, Zelimkhan Khangoshvili, um cidadão georgiano, combateu na Segunda Guerra da Chechênia, e era considerado um terrorista pelas autoridades russas.
— Neste caso, a preocupação principal do Putin, na verdade, foi trazer de volta aqueles elementos que atuavam pelos russos no exterior — disse ao GLOBO Angelo Segrillo, professor de História da Universidade de São Paulo. — Isso é algo tradicional, especialmente porque ele também foi um espião. Então é bem sensível a essas coisas: ele sempre tenta proteger os seus aliados e trazê-los de volta depois.
Mas houve relutância dentro do governo alemão, apontou o Zeit. O Departamento de Estado dos EUA sugeria que Krasikov fosse envolvido na negociação da jogadora de basquete Brittney Griner, presa em 2022 por porte de substâncias ilegais e libertada em dezembro daquele ano, em troca do traficante de armas russo Viktor Bout. Em 2023, a detenção de Evan Gershkovitch o incluiu nas conversas, mas Berlim não queria uma troca simples, por causa dos antecedentes criminais de Krasikov.
E havia um outro fator que influenciava o impasse: Alexei Navalny. Após ser envenenado com Novichok, uma arma química criada pela União Soviética, em 2020, houve uma intensa negociação diplomática para que ele pudesse ser levado para tratamento médico na Alemanha, e Putin consentiu. Ao contrário do que desejavam as autoridades alemãs, Navalny decidiu retornar para a Rússia em janeiro de 2021, quando foi preso e jamais libertado novamente.
A ministra das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, temia um déjà vu: uma vez fora da Rússia, nada impediria que Navalny resolvesse voltar ao país, como uma espécie de mártir, e mais uma vez jogado em uma cela. Aliados acreditam que ele foi morto (ou deixado para morrer) em uma colônia penal no Ártico porque Putin sabia que o seu maior algoz interno seria incluído na lista, e não estaria disposto a cedê-lo novamente — na época em que morreu, a equipe dele afirmou que as conversas para sua libertação estavam "na reta final".
“Ele não estava sujeito à troca porque era o único que representava uma ameaça política real. Ele foi o ponto de encontro da oposição e o único líder público popular em quem os Estados Unidos poderiam fazer uma aposta real. A remoção (morte) de Navalny não foi uma decisão emocional momentânea. Foi uma jogada de xadrez fria”, escreveu a colunista Yulia Latinina, em artigo no site Novaya Gazeta Europa.
Naquele momento, as conversas já estavam em nível de chefes de Estado. O presidente americano, Joe Biden, e o chanceler alemão, Olaf Scholz, concordaram com a abertura do diálogo envolvendo agências de segurança, que mantiveram reuniões secretas com os russos na Arábia Saudita e na Turquia. Segundo o Zeit, foi quando o nome de Vladimir Kara-Murza surgiu, uma vez que Scholz exigia que Krasikov fosse trocado por um opositor de alta patente.
Embora sem o mesmo apelo popular e midiático de Navalny, Kara-Murza é um dos nomes mais importantes da oposição russa, foi envenenado duas vezes com Novichok e cumpria uma pena de 25 anos por traição, por divulgar informações falsas sobre o Exército russo e por ser afiliado a uma “organização indesejável”. Como visto nesta quinta-feira, o Kremlin concordou, mais uma vez seguindo um velho modus operandi.
— Em primeiro lugar, Putin tira aquela pessoa do país, aquela pessoa não serve mais como um mártir — disse Segrillo. — Em segundo, é interessante ver como isso lembra os tempos da União Soviética, mandar dissidentes externos para o exterior e para receber pessoas em troca. Mas é parte do sistema, Putin é pragmático e, dentro desse esquema de trocas, achou que valia a pena [permitir que fosse trocado] para que outros pudessem retornar.
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Após o acordo, ficam os sinais no ar para o futuro próximo. A começar pela manutenção de um canal de diálogo entre Rússia e Ocidente, no momento em que as relações entre os dois lados estão em seu pior momento desde a Guerra Fria. Mas os efeitos práticos disso podem ser distintos, dependendo do ângulo pelo qual se observe.
“Embora as autoridades russas possam encarar cautelosamente a troca como um sinal da vontade do Ocidente de fazer acordos pragmáticos, o Ocidente a vê como uma confirmação do perigo representado por uma Rússia que faz reféns, aprisiona dissidentes e comete assassinatos nas prisões”, afirmou, em análise no X, Tatyana Stanovaya, fundadora da consultoria R.Politik. “Não há nenhuma indicação de que o intercâmbio facilitará as negociações de paz relativas à Ucrânia. Em vez disso, reflete a situação atual, onde cada lado aprende a conviver com a intransigência mútua.”
Já Segrillo prefere ser mais otimista.
— Essa troca também reflete um pouco a fadiga com a guerra na Ucrânia — afirmou o professor da USP. — Ela é um pouco simbólica disso, de tenta tentativa de desatar alguns nós. De chegar a alguma solução, que provavelmente não será satisfatória para nenhum dos lados, mas podemos estar caminhando para isso.
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Para além da diplomacia, Anton Shekhovtsov, diretor do Centro de Integridade Democrática, acredita que a pressão pela libertação de Krasikov também mostra que o Kremlin não descarta manter ou intensificar os ataques a dissidentes no exterior.
“A decisão de Berlim de incluir Vadim Krasikov — um assassino russo condenado que cumpre pena de prisão perpétua na Alemanha — no intercâmbio entre o Ocidente e a Rússia é um dos erros mais imorais que a Alemanha cometeu nos últimos anos, opinou Shekhovtsov, no X. “Devolver este assassino condenado à Rússia significa facilitar novos assassinatos políticos em solo europeu. Berlim está ciente de que assumirá a responsabilidade por tais ações?”
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