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Cresce no Brasil a procura de jovens por laqueadura e vasectomia, afirmam médicos; entenda

A vasectomia e a laqueadura apresentaram um aumento significativo desde a diminuição da idade mínima para a realização dos procedimentos, de acordo com dados do Ministério da Saúde

Agência O Globo - 17/07/2024
Cresce no Brasil a procura de jovens por laqueadura e vasectomia, afirmam médicos; entenda
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

A mudança na lei brasileira, em setembro de 2022, que permite a esterilização voluntária a partir dos 21 anos, mesmo sem filhos, e não exige mais a autorização do cônjuge, colocou a procura pela realização da laqueadura — também conhecida como ligadura de trompas — e da vasectomia em uma crescente. Ambos os procedimentos fazem parte do que se chama de planejamento familiar, um direito assegurado de cada cidadão definir o seu futuro reprodutivo.

Segundo dados de um levantamento feito pelo Ministério da Saúde, a busca pelo procedimento contraceptivo feito em mulheres saltou de 54.222 registros no ano em que a nova lei foi promulgada, para 98.019 em 2023, um aumento de 80,77%. Já o método masculino teve um salto de 67.689 para 95.209 no mesmo período, 40,63% de cirurgias a mais.

Isto tem chamado a atenção dos profissionais da área, pois a escolha pela esterilização voluntária tem sido feita principalmente por pessoas jovens e sem filhos de ambos os sexos.

Viabilização do acesso atrai jovens

A decisão de não ter filhos através da esterilização voluntária possui diversas etapas. Quando se pensa em recorrer ao sistema público, a primeira delas é visitar uma unidade básica de saúde (UBS), onde ocorre o encaminhamento para um ambulatório de planejamento familiar e, em seguida, aos profissionais responsáveis pelo acompanhamento do caso.

Além disso, inclui a assinatura de diversos documentos e realização de exames para confirmação tanto da inexistência de transtornos psicológicos que coloquem em risco a consciência ou que determinem que a pessoa não pode receber anestesia.

Anteriormente, a legislação 9.263/1996 previa que a esterilização só poderia ser feita a partir dos 25 anos, assim como era obrigatório o consentimento expresso do cônjuge em ambas as cirurgias. Contudo, era livre a feitura em qualquer idade no caso de pessoas com dois filhos vivos.

Para Yasmin Koury, de 21 anos, a mudança na lei foi um alívio. Ela cogitou esperar até completar 25, mas após atingir a nova idade mínima em agosto de 2023, conseguiu dar entrada na papelada para realizar a laqueadura antes do esperado.

— Fiz a cirurgia no dia 5 de junho de 2024, foi quase um ano depois desde que dei entrada no pedido pela laqueadura. Me sinto aliviada. Mesmo que tenha chance de falha, as chances contraceptivas são bem altas quando você combina com outros métodos, como o DIU e a camisinha — afirma a arqueóloga, mestranda pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Sua publicação sobre o assunto viralizou na rede social X. Nela, Yasmin compartilhou uma foto deitada logo após o fim do procedimento e cita na legenda a conhecida frase do escritor Machado de Assis: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

— Eu sempre soube que não queria ser mãe. Quando criança, brincava com as minhas amigas e nunca queria ser a mãe da minha boneca, eu era irmã, amiga ou vizinha — conta Yasmin, que fez o procedimento por meio do seu plano de saúde.

Gabrielle Lotti, de 22 anos, conseguiu fazer o procedimento em 10 de abril deste ano, mas já havia procurado um posto de saúde, em Palmeira das Missões, no interior do Rio Grande do Sul, um ano atrás.

As novas regras tiveram um prazo de 180 dias até que começassem a valer. Desta forma, somente entrou em vigor no país no dia 2 de março de 2023.

— Assim que houve a movimentação de envio do protocolo, as assistentes de saúde do posto da minha região entraram imediatamente em contato comigo e então dei início na parte da documentação. A cirurgia foi extremamente tranquila e a recuperação também tem sido fácil. Eu tinha medo dos cuidados do pós operatório e no fim foi mais tranquilo do que eu imaginava — diz.

Após conseguir realizar o procedimento, a jovem passou a compartilhar na plataforma TikTok sua trajetória até a esterilização através do Sistema Único de Saúde (SUS) para ajudar outras mulheres interessadas em fazer o mesmo.

— Como a laqueadura ainda é um tabu, não existem muitas informações a respeito dela. Provavelmente porque quem realiza o procedimento costuma ser alvo de preconceitos e xingamentos. Então decidi compartilhar a minha experiência para informar, sanar dúvidas e encorajar quem já tomou esta decisão mas ainda tem medo e não sabe por onde começar — explica.

No caso de Matheus Duarte, de 26 anos, assim que entrou na vida adulta a vasectomia se tornou uma possibilidade, mas preferiu esperar até se tornar mais velho antes de iniciar a procura.

Neste ano, o assistente administrativo tomou a decisão de não ter filhos e seguirá com o processo para realizar a vasectomia até o final do ano que vem.

— Comecei a cogitar essa escolha porque desde adolescente sempre tive consciência de que não gostaria de ter nenhum filho e hoje continuo com esse pensamento. Acredito que o procedimento seria a forma mais eficiente de ter um planejamento mais estruturado sobre isso — pondera.

Autonomia reprodutiva

Nesse contexto, Jimena de Garay, professora de psicologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), observa que a mudança proporcionada pela nova lei garante uma maior capacidade de autonomia reprodutiva para a nova geração.

— Como as mulheres se sentem sobre a maternidade, no medo de engravidar ou de criar um ser humano do zero, são receios e medos que sempre existiram. Isso vale para os homens também. As pessoas agora sabem que elas podem decidir o que fazer com o próprio corpo. Não se tem aquela obrigatoriedade social de ser mãe para ser mulher ou ser pai para ser homem como antes. Além disso, só agora a tecnologia médica está dando conta de contemplar esta decisão de não procriar — salienta a pesquisadora da área de direitos sexuais e reprodutivos.

Outro elemento é a preocupação crescente com o futuro, segundo a psicóloga.

— O mundo parece estar “mais apertado”, desigual, com mais dificuldades de projetar um futuro e encontrar um emprego, na perspectiva do jovem. Por isso, muitos escolhem não ter filhos — analisa Garay.

De acordo com a ginecologista Ilza Maria Urbano Monteiro, membro da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS), as filas em busca da intervenção cirúrgica estão cada vez maiores tanto nos hospitais públicos quanto nos particulares.

Para a especialista em laqueaduras, a alta procura se deve a uma combinação de fatores. Um deles é a abrangência do poder de escolha, que, pela nova lei, independe da aprovação do parceiro. Outro é a diminuição da idade mínima para os 21 anos, aumentando o escopo de pessoas.

— Há sim aumento da procura pela população mais jovem, não necessariamente apenas nessa faixa etária entre 21 e 25 anos. Acredito que a possibilidade de realizar a laqueadura durante a cesárea ou após o parto também facilitou o acesso — afirma.

Sob o mesmo ponto de vista, a ginecologista e obstetra Karina Tafner, do Hospital Santa Casa de São Paulo, observa que a reversibilidade pode trazer uma segurança maior para as mulheres que optam pela ligadura. Contudo, assim como os homens interessados em fazer a vasectomia, precisam passar pelos 60 dias de reflexão (entre a busca ativa e a realização) exigidos.

— Mas ainda assim as taxas de sucesso na reversão não são altas, elas variam entre 40% e 80%. O que precisa ser levado em consideração. É considerado um procedimento complexo, por isso, pela lei, existem os 60 dias de reflexão depois de todas as orientações — ressalta Tafner.

Em contrapartida, um ponto de preocupação levantado por Monteiro é a decisão da laqueadura sem a tentativa de outros métodos contraceptivos considerados seguros e mais fáceis de reverter.

— Temos métodos tão eficazes quanto a laqueadura para disponibilizar para as mulheres no sistema público. DIUs e implantes são muito eficazes também — observa.

Outra questão é que o tema também continua a ser discutido no âmbito jurídico. Contudo, com a intenção de tornar possível os jovens tomarem a decisão ainda mais cedo. Deputados do Partido Socialista Brasileiro (PSB) apresentaram ao Supremo Tribunal Federal (STF) a proposta da idade mínima ser de 18 anos, considerado a entrada na maioridade legal no país.

— No que eu observo, caso o projeto dos deputados de pedido ao STF para diminuir a idade mínima ainda mais for para frente o índice de arrependimento da laqueadura, que já existe e é grande, só vai aumentar — a ginecologista da Febrasgo ressalta.

O urologista Henrique Machado, especializado em cirurgias minimamente invasivas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), acredita que, para o caso da vasectomia, o desdobramento observado nos dados se deve à difusão da cirurgia de reversão entre os homens e à mudança de percepção em relação aos estigmas.

— Houve uma mudança no entendimento dos homens sobre o procedimento. Agora se sabe que ele é relativamente simples e se têm o conhecimento de que a cirurgia não afeta o libido nem a ereção, um medo comum que o público masculino tinha. A reversão da vasectomia, apesar de não ser 100% garantida, estimula principalmente os homens mais novos e sem filhos — pondera o médico.

Como funcionam os dois métodos

O objetivo da laqueadura é obstruir as trompas de Falópio, as quais conectam o útero ao ovário, para impedir a chegada dos espermatozoides aos óvulos. Isto pode ser feito a partir do corte, amarração ou inserção de um anel nelas, em uma intervenção médica que leva em torno de entre 20 a 30 minutos em uma laparoscopia (chamada de vaginal, feita a partir de pequenas incisões com o auxílio de um aparelho chamado laparoscópio), ou até 60 minutos em uma laparotomia (chamada de abdominal, com a abertura de uma pequena parte do abdômen).

Já a vasectomia se refere à retirada de um fragmento dos dois canais que levam os espermatozóides dos testículos ao pênis. Nela, é aplicada uma anestesia na região do saco escrotal. Dura cerca de 30 minutos e a recuperação dos pontos se dá geralmente em uma semana.

Até três meses após a cirurgia é recomendada a utilização de outros métodos contraceptivos combinados, pois ainda há risco de gravidez.

Para condutas desrespeitosas com quem procura o serviço para realização do procedimento ou ações no SUS contra a lei estabelecida, denúncias podem ser feitas através do Disque Saúde (136) ou na ouvidoria oficial através do endereço: https://www.gov.br/saude/pt-br/canais-de-atendimento/ouvsus.