Geral
Literatura e masculinidades: como a ficção reflete sobre o é ser homem?
'Às vezes, um personagem detestável propõe discussões mais interessantes do que um mocinho feministo', diz crítica literária Ligia Gonçalves Diniz, autora de um livro sobre o tema

Certo dia, a crítica literária Ligia Gonçalves Diniz disse a seu psicanalista: “Me deu inveja de ter um pau.” Não, ela não pretendia comprovar a tese de Freud de que a mulher tem “inveja do pênis”. Ligia explicava como o escritor americano Philip Roth, criador de um punhado de personagens misóginos, falocêntricos e magníficos, a ajudara a compreender algo que escapa à sua experiência feminina: “O que é ter de concentrar a autoestima em um pedaço tão restrito do corpo.” Esse episódio é recordado em “O homem não existe: masculinidade, desejo e ficção”, seu novo livro. O título é uma referência a outro psicanalista, o francês Jacques Lacan, que disse que era a mulher quem não existia. Ao analisar autores que vão de Homero a Daniel Galera, Ligia investiga como a literatura elaborou uma pergunta que muito escritor ainda tenta responder: o que é ser homem?
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Dos 12 ensaios do livro, quatro mostram como a literatura abordou a relação do homem com o pênis: do medo da impotência (que acomete personagens de Philip Roth) à suposta autonomia do órgão ( Platão já reclamava disso). O editor até perguntou se Ligia não gostaria de escrever um livro só sobre o pênis, mas ela achou melhor não. “O homem não existe” trata ainda de temas como a autoimagem masculina, a valorização da força bruta como índice de virilidade e a ideia de que machos são aventureiros, não param quietos em casa e estão sempre prontos para a guerra.
— A ficção não reproduz a realidade, mas tem efeitos sobre nós — afirma Ligia. — Por exemplo, a “Ilíada” começa com um chilique de Aquiles com Agamenon. E ainda hoje é reiterada a ideia de que a raiva masculina deve ser coberta de glória, porque seria um índice de coragem. Homens que nunca abriram a “Ilíada” na vida também são afetados por essa noção de virilidade clássica, que contaminou toda a experiência ocidental.
O foco da análise de Ligia são as obras do chamado cânone, escritas em sua maioria por autores brancos, heterossexuais e de classe abastada. Por isso, diz ela, “existem várias dimensões da masculinidade que não se tornaram objeto da literatura por não fazerem parte das vivências dos escritores da elite”. Essa lacuna, porém, vem sendo preenchida.
— Diferentes experiências corporais (de raça e de identidade sexual) demandam novidades na linguagem, e a renovação do romance passa por aí. Multiplicando-se as formas de se relacionar com o mundo, multiplicam-se também as possibilidades da ficção — afirma ela.
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Jeferson Tenório é um dos autores que vêm expandindo as reflexões sobre a masculinidade além dos padrões do cânone. No premiado romance “O avesso da pele” (Companhia das Letras), ele questiona estereótipos ligados à masculinidade negra, como a hipersexualização dos homens negros e representação de pais negros como ausentes e violentos. Henrique, pai do narrador, é alvo de comentários racistas dos parentes da namorada, curiosos a respeito de sua virilidade. Ele também exerce uma paternidade que “não é nem traumática nem idealizada”.
— Henrique está longe do clichê do homem negro que reproduz em suas relações a violência que sofreu. Quando compus as cenas em que ele é objetificado sexualmente, pensei que estava escrevendo o óbvio, mas me espantei ao perceber que isso para muita gente não era óbvio — diz Tenório. — Minha ideia era buscar outras possibilidades de representar um homem negro. Porque não existe uma masculinidade exclusivamente negra. Por mexer com a subjetividade das pessoas, a literatura nos permite entrar nessa discussão, mas não dá uma resposta.
Trilogia sem ereção
Leandro Rafael Perez é autor de três livros de poesia cujos títulos, em conjunto, sugerem uma perda de ereção: “lança além do real só”, “turnê a meio mastro” e “pau mole”. Agora, ele trabalha no romance “Vigília no masculino”, no qual um rapaz gay passa a noite pensando no que é ser homem. Em “Baldomero” (Fósforo, 2022), ele explora a relação dos homossexuais com os clichês da masculinidade. O protagonista é um jovem gay que recebe atenção especial por preferir ser ativo no sexo.
— A sociedade mente que todos os homens precisam procurar uma masculinidade cada vez mais plena, como se esse fosse nosso objetivo natural. Mesmo o homossexual mais másculo, quando dá um passo em falso, tem sua masculinidade contestada. Me interessa pensar a identidade de quem está à margem da definição clássica do que é ser homem — diz ele.
Para Breno Kümmel, “a necessidade de se validar é fundante da tristeza masculina”. Os personagens de seu romance “Sendo ele quem era” (Patuá) não o deixam mentir: a sensação de insuficiência e a pressão para atingir determinados padrões de masculinidade estão na raiz na infelicidade de cada um deles. Cada capítulo é protagonizado por um homem que passou pela vida de Monique.
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— Os problemas masculinos são sempre tratados pela chacota ou pelo escárnio. Ou o homem é foda ou é um bosta. A vergonha por ser insuficiente (economicamente, sexualmente etc.) é uma das forças motrizes da masculinidade. Isso está até em Philip Roth, o macho alfa da literatura. Sua obra é uma confissão de fraqueza e uma revolta furiosa contra a vulnerabilidade — acredita Kümmel.
Ligia nota nos escritores contemporâneos “um cuidado maior na construção de personagens que refletem sobre as expectativas colocadas sobre os homens”.
Ela não foge de uma questão espinhosa: o que homens brancos podem escrever se não são intérpretes privilegiados da experiência humana?
— Em “Moby Dick” (do americano Herman Melville), o narrador diz ter descoberto que sua maior dor é também sua maior glória. Essa lógica só vale para homens brancos em posições dominantes. Porque a maior dor de mulheres, pessoas negras e outras minorias sempre vem da opressão. Na verdade, essa ideia é perniciosa até para os homens.
O escritor americano Ben Lerner diz que “qualquer coisa que um homem branco escreva será desfigurada por sua posição subjetiva.” Mas ele também defende que cabe a seus pares “testar quais são as partes da consciência passíveis de compartilhamento”.
Liberdade para escrever
Para Ligia, essa “comunhão com o leitor” depende de uma abertura à contribuição imaginativa daquele que lê. E isso não significa veto a personagens problemáticos ou machos tóxicos.
— Um autor pode escrever sobre o que quiser. Um bom livro que contribua para o debate sobre masculinidade não precisa falar como ser um bom homem. Literatura não é manual. Literatura mexe com a nossa imaginação, movimenta nossas noções sobre o mundo — explica. — Às vezes, um personagem detestável propõe discussões mais interessantes do que um mocinho “feministo”.
Serviço:
‘O homem não existe’
Autora: Ligia Gonçalves Diniz. Editora: Companhia das Letras. Páginas: 416. Preço: R$ 89,90.
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