Internacional
Especialistas alertam que medida dos EUA que proíbe desabrigados de dormirem nas ruas 'varre problema para debaixo do tapete'
Suprema Corte americana abriu precedentes para cidades punirem ou até deterem sem-tetos; mais de 650 mil pessoas não têm moradia no país, segundo registros do ano passado

Dentro sua barraca verde, montada em uma calçada de Hollywood, na Califórnia, Anthony ouviu passos se aproximando. Ele sabia a quem pertenciam, sem desconfiar por um segundo que pudessem ser de transeuntes que passavam de maneira despretensiosa. Eram as autoridades da cidade da Califórnia.
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— Estou apenas tentando sobreviver — desabafou o homem à rede BBC News, de dentro de sua barraca, onde uma mochila azul fazia a função de travesseiro, minutos antes de levantar e procurar outros local. — Algumas noites eu não consigo dormir. Estou cansado o dia todo. Só quero deitar em algum lugar confortável e tirar um bom cochilo. E é só isso. Não estou incomodando ninguém.
Na semana passada, a Suprema Corte dos EUA decidiu, por seis votos, que as cidades americanas poderão proibir pessoas em situação de rua de dormirem em locais públicos sem que estejam constituindo alguma "punição cruel e incomum", de acordo com a Oitava Emenda da Constituição americana. A medida chegou em um momento crítico para o país: foram registrados pouco mais de 653 mil pessoas sem moradia em 2023, quase 11% de aumento em relação ao ano anterior.
Muitas cidades têm se esforçado para combater a crise recente, e a questão está no centro de alguns ciclos eleitorais na Costa Oeste, onde as autoridades investiram quantias sem precedentes em abrigos e construção de moradias econômicas. Mas, as medidas de assistência social têm efeito a médio e longo prazo, enquanto a população pressiona por resultados urgentes. Como resultado, muitos se sentiram encorajados para aplicar a medida.
— Não é fácil e levará algum tempo para colocar em prática soluções que funcionem, portanto, há um pouco de teatro político acontecendo aqui — afirmou o advogado para a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês) Scout Katovih à rede britânica. — Os políticos querem poder dizer que estão fazendo alguma coisa.
A ACLU tem monitorado a reação à medida dos prefeitos no país. De acordo com a BBC, ONG já enviou uma carta para cidade de Manchester, em New Hamphisre, após o prefeito prometer proibir os acampamentos para "tornar as ruas mais seguras, limpas e transitáveis". Em Lancaster, Califórnia, o prefeito Rex Parris prometeu "ser muito mais agressivo" ao aplicar a medida. Na cidade de Spokane, em Washington, os líderes pediram às autoridades que desmantelem mais agrupamentos.
'Varrer problema para debaixo do tapete'
O caso tratado pela mais alta corte teve origem nas regulamentações da cidade de Grants Pass, no oeste do estado de Oregon, que tem uma população de mais ou menos 40 mil habitantes. A cidade viu sua população dobrar de tamanho nos últimos 20 anos, mas a oferta de moradias públicas e acessíveis não acompanhou ao crescimento, fazendo com que os preços disparassem e o número de pessoas em situação de rua aumentasse.
Grant Prass, que atualmente proíbe as pessoas de acampar ou usar qualquer tipo de cama em propriedade pública, tomou essa providência depois que os parques da cidade foram preenchidos com barracas, cobertores e papelão. Aqueles que a violarem enfrentam uma multa de US$ 100 (aproximadamente R$ 2 mil) e possíveis penas de prisão de até 20 dias para reincidentes.
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Um tribunal de apelações observou que a prática proibia a falta de moradia e concluiu que a medida era uma punição cruel e incomum. A Suprema Corte, porém, derrubou a decisão. Em sua opinião de maioria, o juiz Neil Gorsuch, indicado pelo ex-presidente Donald Trump, afirmou que "um punhado de juízes federais não pode começar a 'igualar' a sabedoria coletiva que o povo americano possui para decidir 'a melhor forma de lidar' com uma questão social urgente como a falta de moradia".
Mas, para Katovih, prender ou multar tampouco terá efeitos positivos sobre a crise imobiliária. Pelo contrário, apenas "varre o problema para debaixo do tapete".
— Você pode limpar uma rua, mas as pessoas que você prende certamente voltarão — exemplificou.
Outros especialistas concordam com a visão do advogado da ONG, apontando como a medida intensifica o ciclo de pobreza e, consequentemente, a dificuldade de acesso a uma moradia digna ou encontrar um emprego, pontuou Chris Herring, professor assistente de sociologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles.
— Há montes e volumes de evidências mostrando que ter uma multa não paga e um mandado de prisão, e ainda mais o encarceramento, impede as pessoas de terem acesso a moradia e empregos em outros lugares — disse o pesquisador à BBC. — Na verdade, isso impede que as pessoas tenham acesso a abrigo.
A rede britânica destacou que nem todas as cidades aplicaram a decisão, citando como exemplo o prefeito de Los Angeles, que classificou a decisão como "decepcionante" e prometeu continuar investindo em moradias populares, tratamento voluntário e proteções contra despejo. Dias após a decisão, a cidade divulgou uma contagem de moradores de rua, mostrando a primeira queda nos números em quase seis anos.
Tophr William, de 28 anos, contou à BBC que era veterano do Exército, mas foi jogado nas ruas devido a uma combinação de aumento das despesas médicas e dificuldades econômicas causadas pela pandemia, fazendo com que ele ficasse sem emprego e sem moradia. Assim como Anthony, ele afirmou estar frustrado com a medida.
— Servi oito anos no exército. Fiz dois turnos de serviço. Fiz o sacrifício máximo lutando por este país, e ser tratado como um cidadão de segunda classe é uma loucura — desabafou.
Quando questionado se tem medo de ser preso, ele afirmou que isso faz parte da vida que leva, observando que "já tem muita coisa com que lidar" e que só começa a se preocupar quando as coisas "começam a afetá-lo". No fim, cansado, afirmou que ser preso podia até não ser o pior resultado:
— Pelo menos terei uma cama e talvez eu esteja no sistema e receba o tipo certo de ajuda.
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