Internacional

‘Um governo Marine Le Pen seria a maior vitória que Putin poderia ter na Europa’, diz deputado português

Político e escritor Rui Tavares comentou sobre o avanço da extrema direita na União Europeia e o vínculo de líderes desse movimento com o Kremlin

Agência O Globo - 30/06/2024
‘Um governo Marine Le Pen seria a maior vitória que Putin poderia ter na Europa’, diz deputado português

O avanço da extrema direita na União Europeia (UE) e seus vínculos com a Rússia são uma preocupação para o escritor e deputado português Rui Tavares. Atento ao movimento de figuras políticas que descreve como “submarinos russos” no bloco europeu, Rui vê as eleições antecipadas na França como decisivas para a estratégia de Vladimir Putin de criar uma divisão entre os países-membros no apoio à Ucrânia — um conflito que define como existencial para o futuro da Europa. Em viagem ao Brasil para promover o livro “Agora, agora e mais agora” (Tinta-da-China Brasil), durante A Feira do Livro, que acontece neste fim de semana em São Paulo, o parlamentar conversou com O GLOBO sobre suas percepções sobre o continente.

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Qual a sua leitura do avanço da extrema direita no Parlamento Europeu?

A questão da extrema direita é importante em nível global, porque temos a emergência de uma verdadeira “Internacional Nacionalista’”, uma “Internacional Reacionária”. Ela passa por [Jair] Bolsonaro, por [Donald] Trump, por [Viktor] Orbán, e tem uma estratégia coordenada. Órban é um elemento discreto, mas muito importante dela, porque foi o primeiro líder desta orientação a governar, e conseguiu minar completamente, com um sucesso que nem Trump nem Bolsonaro tiveram, o Estado de Direito no seu país. O Conselho Europeu tem grande culpa nisso. Eles foram deixando rolar essa deriva autoritária de um dos Estados-membros da União Europeia, e agora estamos em uma situação complicada, em que há diversos “submarinos de Putin” dentro do bloco. Orbán é um deles, mas também partidos como o AfD, na Alemanha, e o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, na França. O que eles tentam é minar a possibilidade de uma estratégia comum europeia.

Que estratégia europeia exatamente?

Uma estratégia que promove a independência dos países médios e pequenos do continente contra o imperialismo russo. Eu sei que é um tema que é visto com uma grande distância, até mesmo com uma dose de incompreensão, na América Latina, mas para nós é uma matéria existencial.

O quanto a guerra na Ucrânia influencia a política europeia e a política doméstica dos países europeus?

O espaço que ocupa é enorme. Tanto no espaço visível, quanto no mais oculto. Em cada país da UE, há um debate sobre a guerra na Ucrânia. Majoritariamente, as opiniões públicas europeias têm aguentado melhor do que o que Putin esperava. Portugal, por exemplo, é um país que está próximo da Ucrânia, ao contrário do que se poderia imaginar pela distância geográfica, por ter uma grande comunidade de imigrantes ucranianos. É um debate fácil de se fazer. No lado mais oculto, há interesse por parte do Kremlin de interferir na política interna dos Estados-membro e na política da própria UE, de forma a criar desinformação, comprar políticos e partidos, infiltrar-se em processos legislativos e de decisão. E não podemos ser ingênuos em relação a isso: essas operações de influência, espionagem e cooptação dentro do espaço europeu prosseguem em um ritmo muito acelerado. Há partidos europeus que sabemos que recebem financiamento e apoio da Federação Russa, como a Liga, de Matteo Salvini, na Itália, e o Reagrupamento Nacional, de Marine Le Pen, na França. Existem outros, que não sabemos especificamente como, mas que se beneficiam de apoio de Putin, em particular nas redes sociais. É decisivo para Putin conseguir criar uma disrupção nos Estados europeus. As eleições francesas, neste sentido, são absolutamente decisivas. Um governo Marine Le Pen seria a maior vitória que Putin poderia ter na Europa.

Qual seria o grau de conexão dessa “Internacional Nacionalista” a qual o senhor se referiu? A guerra pode virar uma pauta unificada?

Se há uma lição que podemos aprender dos últimos anos é que qualquer pauta, com insistência e meios de difusão suficientes, pode ser determinante. Quando eu cheguei ao Parlamento Europeu, em 2009, [Nigel] Farage [líder da extrema direita no Reino Unido] era um deputado que mal aparecia nas comissões, fazia muito pouco trabalho parlamentar e se guardava para discursos que eram feitos para o YouTube. Ele era um pária na política britânica, nunca tinha sido eleito para a Câmara dos Comuns. O Parlamento Europeu, por ter um sistema proporcional, é que deu a políticos como Farage e Le Pen meios para que se tornassem o que Lenin chamaria, há 100 anos, de revolucionários profissionais. Ele só falava de sair da UE — uma pauta que era considerada totalmente marginal, até que deixou de ser. O nível de organização que essa Internacional Nacionalista tem, em termos de ação nas redes, com apoio tácito ou explícito do Kremlin, é muito grande.

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Em Portugal, o partido de extrema direita Chega teve um resultado expressivo nas eleições nacionais, mas não repetiu a votação nas eleições europeias. O que justifica resultados tão distintos em um espaço curto de tempo?

A guerra na Ucrânia teve um papel nisso. O Chega é um partido que tinha tudo para seguir o tipo de política de Salvini e de Le Pen, que são assumidamente pró-Putin. A única diferença é que era um partido muito recente quando a guerra na Ucrânia começou. Aí eles viram que não rendia, em termos eleitorais, serem pró-Rússia e anti-Ucrânia, sobretudo pelo contexto que já mencionei antes, da proximidade entre Portugal e Ucrânia. O líder desse partido foi tentando fazer passar outra imagem, que ele era o maior amigo dos ucranianos — o que, no meu ponto de vista, é fingimento. Ficou claro com a escolha do candidato deles ao Parlamento Europeu, um ex-embaixador português que tinha um histórico de apoio a Putin e de críticas à Ucrânia e a Zelensky. Isso prejudicou a relação deles com o eleitorado.

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O senhor está no Brasil para participar da Feira do Livro, em São Paulo. O que pode falar sobre sua nova obra?

Este livro é uma espécie de sonho que foi nascendo de escrever uma história de uma certa ideia de humanidade, a partir dos conceitos de dignidade humana e dos direitos humanos. Uma história que se passa em vários continentes e épocas, com vários episódios — alguns deles de algum triunfo, mas outros em que essas ideias ficaram em perigo. Eu mostro que tipo de escolha os seus defensores tiveram que fazer: de tentar resistir e passá-las para frente de maneira discreta, às vezes quase secreta, para as próximas gerações. É uma espécie de história alternativa da realidade, que começa antes do ano 1.000, na Ásia Central, com o filósofo Alfarábi. Passa por Dante [Alighieri], por Erasmo de Rotterdam e Thomas More, passa pelo século XVIII, passa por [Baruch] Espinoza, pelo caso Dreyfus e pela Declaração Universal de Direitos Humanos. É o que eu chamo de “Lado B” da história das ideias.