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Cinema no Brasil: circuito do país busca se recuperar da pandemia e fazer frente ao streaming

Entre crises e iniciativas de renovação,

Agência O Globo - 23/06/2024
Cinema no Brasil: circuito do país busca se recuperar da pandemia e fazer frente ao streaming

“Morreu, mas passa bem.” A frase que virou meme pode ser usada para descrever o atual momento do cinema no Brasil e em boa parte do mundo. Com a ascensão do streaming, aliada ao impacto da pandemia de Covid-19, muito tem se falado sobre um possível fim do cinema nos últimos anos. Resultados decepcionantes de filmes como “Adão Negro” (2022), “A pequena sereia” (2023) e “Furiosa: uma saga Mad Max” (2024) geraram rumores sobre a agonia da chamada sétima arte. Mas ela resiste, como comprovado com sucessos de longas como “ Top Gun: Maverick” (2022), o duo “ Barbie” + “Oppenheimer” (2023) e “ Divertida mente 2” (2024), em cartaz em 2.300 salas do país após bater recorde em sua estreia nos Estados Unidos.

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Três anos após o período mais crítico da pandemia, que foi em 2020, o Brasil apresentou uma curva ascendente nos índices de público (114,1 milhões de pagantes) e número de salas (mais de 3.400 pelo país), mostrando que, embora ainda esteja aquém do cenário anterior ao confinamento (em 2019, esses números eram 177,7 milhões de ingressos e 3.507 salas), o cinema está longe de se considerar descartado como experiência de lazer coletivo da população.

— O cinema sentiu o golpe, da pandemia, do streaming e, mais recentemente, da greve em Hollywood. Mas a guerra não está perdida — diz Paulo Sérgio Almeida, diretor do site Filme B, especializado no mercado cinematográfico. — O streaming, que muita gente acreditava que iria acabar com o cinema, hoje está com dificuldades para aumentar seu número de assinantes, precisando inclusive aumentar o valor de suas assinaturas.

Nos gráficos abaixo, estão alguns índices relevantes para quem busca visualizar um panorama do público e das salas de cinema no Brasil do início dos anos 1970 até hoje.

Público

As salas no Brasil viveram seu auge de público em 1975, com 275,3 milhões de ingressos vendidos no país, na época com a contribuição de exemplares do cinema popular brasileiro como “O Jeca macumbeiro”, com Mazzaropi, e “O Trapalhão na ilha do tesouro”, com Renato Aragão e Dedé Santana, ambos com 3,4 milhões de espectadores. Dados da Ancine, via Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual, mostram que, ao longo dos anos 1970, a indústria nacional viveu seu melhor momento no país. A situação começou a mudar na década de 1980, com o cenário de hiperinflação que atingiu a economia brasileira e a renda da população. Com a perda de poder aquisitivo, as camadas mais populares, que frequentavam as salas à época, acabaram deixando essa opção de lazer de lado.

Dos mais de 200 milhões de ingressos vendidos nos anos 1970, o Brasil caiu para 52 milhões de ingressos em 1997, número também prejudicado pela safra cinematográfica. O líder nas bilheterias do país naquele ano, com 2,6 milhões de espectadores, foi “Jurassic Park 2: o mundo perdido” (para se ter uma ideia, o líder em 2023, “Barbie”, levou 10,9 milhões de pessoas às salas). No ano seguinte, com o fortalecimento da economia após o Plano Real e o lançamento de títulos populares como “Titanic”, que vendeu 16,3 milhões de ingressos no país, a situação começou a melhorar. Os anos 2000 representaram este cenário de início da recuperação da atividade, com o sucesso de marcas como “O senhor dos anéis”, “Harry Potter”, “Star Wars” e Marvel, até chegar, em 2016, a um novo marco de alta de público: 184,3 milhões de ingressos vendidos. Os anos seguintes mantiveram uma média próxima. Até que veio a pandemia...

O ônus da falta de estabilidade

Ao se observar os números da evolução de público de cinema no país, é importante levar em conta também que a população em 1971 era de 93,2 milhões segundo o IBGE, enquanto em 2022, ano dos dados do último censo, já eram 203,1 milhões de brasileiros. Dados populacionais nacionais à parte, a recuperação pós-pandemia acabou afetada por um fator externo: as greves de atores e roteiristas em Hollywood, entre maio e novembro de 2023. A paralisação acabou, mas seus efeitos ainda continuam sendo percebidos, por exemplo, por conta do atraso na produção de grandes estúdios. Por aqui, cada vez mais dependente do cinema americano, o circuito audiovisual brasileiro sente, em 2024, as consequências de um calendário que sofreu com alterações e uma safra aquém das expectativas.

— O cinema é uma indústria que precisa de ao menos uns cinco anos de estabilidade, e é exatamente o que não temos tido. Quando a indústria estava começando a se recuperar, veio a greve e desandou com tudo. Hoje, vivemos um cenário que lembra alguns momentos da pandemia. O investimento dos estúdios caiu, o número de filmes caiu — diz o analista de mercado Marcelo J. L. Lima, responsável pela revista Exibidor e pela sala Cine Marquise, em São Paulo. — A alta temporada do verão americano, que geralmente começa em abril, este ano está começando agora com “Divertida mente 2” e já termina no fim de julho com “Deadpool & Wolverine”, com “Meu malvado favorito 4” no meio. Mas acredito que teremos um último trimestre, entre outubro e dezembro, melhor do que o do ano passado.

É importante destacar, ressalta o analista, que a crise é mundial, com exceções como França, Índia, Coreia do Sul e China, com mercados menos dependentes de Hollywood.

Salas de cinema

Além do recorde de público, o ano de 1975 também teve um número expressivo de salas de cinema no país: 3.276. Uma marca impressionante se considerarmos o perfil das salas à época, que eram espaços enormes, chegando a mais de mil lugares. Mais uma vez, o cenário de crise econômica prejudicou esse índice, que começou a cair até atingir seu menor patamar em 1995, quando foram registradas apenas 1.033 salas.

A migração dos cinemas da rua para as salas menores dos shoppings, iniciada nos anos 1980, também ajuda a explicar o cenário. Entre 1910 e meados dos anos 1980, o cinema era explorado quase como um varejo. Nas grandes cidades, havia quase uma sala em cada bairro, ou em pequenos municípios, com uma malha comercial que abrangia boa parte do país.

O multiplex, que chegou ao Brasil em 1984, veio acompanhado de um modelo de negócio concentrado nas cidades grandes, reduzindo significativamente o alcance dos cinemas no país. Em 2008, 73% deles estavam localizados em shoppings, enquanto 27% eram salas de rua.

A diferença só aumentou. No último Informe do Mercado Cinematográfico da Ancine, relativo ao ano de 2023, os cinemas de shopping já correspondem a 88,4% das salas do país.

Desde o fim dos anos 1990, o cenário de quantidade de salas no país foi de crescimento constante — até atingir o número de 3.507 em 2019. Com o apoio da Ancine, do Fundo Setorial e do BNDES, o circuito exibidor sobreviveu ao confinamento. O Brasil conseguiu voltar a números próximos destes após a pandemia e hoje conta com 3.480 salas.

Segundo Marcos Barros, presidente da Associação Brasileira das Empresas Exibidoras Cinematográficas Operadoras de Multiplex (Abraplex), uma característica negativa da rede exibidora no país (a baixa cobertura, se considerado o território nacional) acabou sustentando a tendência de aumento até hoje.

— Acredito que o cinema no Brasil tem uma oportunidade de crescimento gigantesco. Ainda estamos em apenas 8% dos municípios (são 451 cidades com cinemas no país, de um total de 5.565 cidades) — diz Barros. — Podemos crescer muito em municípios com menos de cem mil habitantes.

Produção nacional

Em 2023, das 415 estreias de longas nos cinemas brasileiros, 161 eram produções nacionais. Ainda assim, os filmes brasileiros atraíram apenas 3,6 milhões de pessoas, ou seja, mesmo respondendo por quase 40% dos filmes que entraram em cartaz, o cinema nacional alcançou só 3,2% do total de público, segundo dados da Ancine. A média é de apenas 22 mil pagantes por título.

Por outro lado, Marcos Barros — também CEO da rede Cinesystem, que adquiriu recentemente salas do Espaço Itaú em São Paulo, Rio e Brasília — diz que a cinematografia nacional pode ajudar a tornar o mercado brasileiro menos dependente de Hollywood.

Ele lembra que os três primeiros meses de 2024 foram salvos pelo cinema nacional, com os sucessos de “Minha irmã e eu”, “Nosso lar 2: os mensageiros” e “Os farofeiros 2”, todos com mais de um milhão de espectadores.

A cineasta Susana Garcia, diretora de “Minha irmã e eu” e “Minha mãe é uma peça 3”, destaca outros fatores para enfatizar a importância de filmes brasileiros:

— O cinema nacional contribui para a formação da identidade brasileira — diz a cineasta. — Um filme que atinge um grande número de espectadores, que é capaz de dialogar com diferentes públicos, consegue levar cultura, entretenimento, reflexão, emoção e faz as pessoas acreditarem cada vez mais na força do cinema nacional. E isso é fundamental num país que ainda tem a indústria cinematográfica muito dominada pelo cinema americano.

Profissionais do cinema nacional têm reivindicado mais incentivos. Na quarta-feira, em meio às comemorações do Dia do Cinema Brasileiro, o presidente Lula, que anunciou investimento de R$ 1,6 bilhão para o audiovisual em 2024, assinou, em evento realizado no Rio, o decreto que regulamenta a cota de tela no país, que estava sem validade desde setembro de 2021.

A medida (que determina a obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais nos cinemas) é vista como importante pelos profissionais da área. Quando aplicada entre 2001 e 2021, a cota de tela fez a fatia de mercado do filme brasileiro subir de uma média de 4% para 12,5%.

O número ainda fica longe dos tempos áureos da indústria brasileira — estima-se que, nos anos 1970, o cinema nacional detinha um market share de 35%.

Leonardo Edde, presidente do Sindicato Interestadual da Indústria Audiovisual (Sicav) e produtor de cinema, fala de uma das funções da ferramenta.

— O filme americano é o de primeiro final de semana, que todo mundo vai assistir. O brasileiro, que tem menos dinheiro pra divulgação, precisa do boca a boca — diz Edde. — Ano passado, lançamos “Nosso sonho” (cinebiografia de Claudinho e Buchecha) apostando no boca a boca. E funcionou. O público cresceu 70% da primeira para a segunda semana, mesmo tendo sido reduzido em 70% o número de sessões. Ele teria funcionado muito melhor se tivessem sido mantidas as sessões, o que é mais factível com a cota de tela.

Se o espectador vê, volta e meia, o circuito cinematográfico perder salas queridas de seu público, em contrapartida boas notícias renovam a fé na atividade. O Cinépolis, por exemplo, não abriu o cinema que era esperado no Shopping da Gávea, Zona Sul do Rio, e ainda ficou sem seus espaços de exibição no Lagoon, na Lagoa. Pelo menos por enquanto, o Estação Ipanema também fechou as portas. Mas, por outro lado, no Rio acaba de ser reaberto o Cine Santa, sala de rua em Santa Teresa. Adil Tiscatti, sócio do espaço, diz que isso se deve a um otimismo com o mercado de cinema

— Esse otimismo, de nossa parte, diz respeito a aposta e investimento nos filmes de arte e nos filmes brasileiros — diz Tiscatti, que, dia 23 de agosto, abre novo cinema, mas desta vez com aporte da Lei Paulo Gustavo via RioFilme: o Cine Carioca José Wilker, em Laranjeiras, com duas salas nas Casas Casadas, onde funciona o órgão municipal de fomento audiovisual.

Em São Paulo, no ano passado houve a abertura do Sato Cinema, na Liberdade, e, em 2022, a reabertura do Cine Bijou, na Praça Roosevelt.

Outro exemplo positivo em meio às dificuldades do circuito em retomar os números pré-pandemia são formas de atrair o público criadas por alguns exibidores, como sessões especiais, mostras retrospectivas e eventos.

— Com o streaming, as pessoas se acostumaram a ver filmes em casa, já têm bons equipamentos, e só um longa, muitas vezes, não é o suficiente para fazer a pessoa sair de casa, pegar um táxi ou pagar um estacionamento — pondera o produtor cultural carioca Cavi Borges. — Tenho notado que cada vez mais as pessoas estão buscando um evento, uma experiência coletiva.

Parceiro do Grupo Estação, Cavi ajuda a companhia exibidora na realização e divulgação de mostras e sessões especiais, que têm sucesso de público.

— No Dia do Cinema Brasileiro, fizemos uma sessão de “O pagador de promessas” e as pessoas adoraram. Há dois anos, começamos uma mostra de filmes brasileiros em 35 mm. Passamos “Madame Satã”, “Bye Bye Brasil”, “Amarelo manga”, tudo lotado. Vira um evento — completa.

Também no Rio, com programação de mostras especiais e retrospectivas, a Cinemateca do MAM tem tido resultados parecidos e já retomou seu público nos patamares de 2019, com a diferença de que está atraindo mais jovens.

— É preciso entender que o que a era digital trouxe foi um estilo de vida mais caseiro. Mas, à medida que o mundo digital se implementou de fato, e vivemos uma experiência limite com a pandemia, o que se percebeu é que as pessoas precisam voltar para a rua e ter uma interação social — diz Hernani Heffner, diretor da instituição. — A experiência cinematográfica mostra sua força no presente porque é uma experiência que não foi superada. Você pode se emocionar vendo o filme em casa, mas nunca vai atingir o que a sala de cinema proporciona, isso é o que as novas gerações estão descobrindo e valorizando através de sessões especiais e mostras.

Desafios

É fato que a indústria não é mais a mesma, em comparação com os números do passado. O mercado acredita que a pirataria e a falta de regulamentação sobre janelas de lançamento (cinema, streaming, TV) são os problemas mais imediatos a serem combatidos, e torce para que a consolidação de um cinema nacional popular ajude a proteger o circuito brasileiro de crises em Hollywood. De toda forma, Heffner reforça:

— O cinema, que pareceu ser colocado para trás, demonstrou sua força de impacto emocional, de ser um espaço de encontro, e não vai acabar.