Internacional
‘No Brasil e nos EUA, a escravidão está conosco todos os dias’, diz primeiro diretor negro do Instituto Smithsonian
O historiador Lonnie Bunch conta como mecanismos de apagamento da memória são constantes no país; ele esteve no Rio para participar de conferência sobre história pública
Para o historiador Lonnie Bunch, fundador do Museu Nacional de História e Cultura Afro-Americana e primeiro negro a chefiar o prestigiado Instituto Smithsonian, do governo americano, o “preço da liberdade é a vigilância”, uma referência à frase de Thomas Jefferson, um dos pais da democracia americana.
Nesta quarta-feira, os Estados Unidos celebram a libertação dos negros escravizados no Texas, em 1865, com um feriado nacional. Mas em entrevista ao GLOBO Bunch diz que quando se nasce negro “é impossível relaxar”, deve-se estar sempre a postos para agir e “garantir que suas crenças sejam as de uma nação”. O movimento dos direitos civis americano, sublinha, não fracassou, mas é preciso lutar diariamente, pois as “janelas de oportunidade estão se fechando” e os mecanismos de apagamento da memória negra são constantes.
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Os EUA têm um longo histórico de restrição do direito ao voto de pessoas negras. O que esperar das eleições deste ano?
Como historiador, acredito que a vigilância é o preço da liberdade. Nunca se chega ao momento de poder dizer “vou relaxar”, ao contrário, é preciso ser capaz de agir e votar com regularidade para garantir que suas crenças sejam as crenças de uma nação. Portanto, eu me preocupo com qualquer eleição, porque preciso ter certeza de que os direitos pelos quais os negros lutaram por centenas de anos nunca serão reduzidos.
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O Partido Democrata foi quem apoiou a igualdade e o direito de voto nos últimos 50 anos. Então, não consigo entender. Acho que os negros sempre acreditaram que [o voto] não é um direito garantido por um único partido, que é preciso que os dois lutem por você. Mas toda vez que vejo alguém segurando uma placa de “Negros com Trump”, fico surpreso. Talvez eles vejam algo que eu não consigo.
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Em 2024, faz 60 anos da assinatura da Lei dos Direitos Civis nos EUA. Que balanço o senhor faz deste período?
Alguns argumentarão o contrário, mas não há dúvidas de que houve um grande progresso. Afinal, sou o dirigente do Smithsonian. Mas as pessoas não devem ver o sucesso individual como o melhor termômetro do sucesso da comunidade. Por um lado, vemos mais pessoas negras graduadas e na classe média. Mas me preocupa que a janela de oportunidade que tive na faculdade e na pós-graduação esteja se fechando. O movimento dos Direitos Civis não fracassou, mas ainda temos de lutar para que entendam que é preciso criar oportunidades econômicas para as pessoas ascenderem.
Qual a importância de um movimento como o Vidas Negras Importam?
Sempre argumentei que quando estudamos a história dos negros nos EUA, estudamos a história americana por excelência, porque só assim conseguimos entender as noções americanas de liberdade, igualdade e espiritualidade. O que o Vidas Negras Importam fez foi, em um momento muito importante, lançar luz sobre as desigualdades, a violência policial e a falta de progresso em muitas cidades. Foi uma parte importante de uma longa história de pessoas negras dizendo “Onde está a justiça?”, “Por que não somos livres?” que continua reverberando.
Qual o principal desafio?
O grande desafio é como transformar a indignação justa em uma estratégia de mudança. Eu tive como mentor o congressista John Lewis, do movimento pelos direitos civis, e ele sempre falava que a raiva é importante, mas o mais importante é usar essa raiva para desenvolver uma estratégia de mudança. De novo, é sobre vigilância. Algumas pessoas argumentam que os negros já alcançaram sua liberdade e justiça e que agora têm de olhar para outros lados. Mas acredito que a raça sempre será um fator crucial nos EUA, e é fundamental que as pessoas, negras e brancas, estejam unidas para lutar por justiça.
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O EUA, assim como o Brasil, tiveram um longo período escravocrata…
Eu viajo pelo mundo conversando sobre como os países abraçam seu passado. Há pessoas que dizem que você não deve falar sobre essas questões, mas a verdade é que você não pode fugir de algo, aquilo sempre vai estar lá. Portanto, é importante que as pessoas percebam que a história não é sobre ontem, é sobre hoje e amanhã. No Brasil e nos EUA, as pessoas parecem não entender a profundidade do impacto da escravidão, que grande parte da riqueza econômica da nação, das atitudes em relação aos negros e da falta de oportunidades foi moldada pela escravidão. A escravidão está conosco todos os dias. Se entendermos isso, poderemos aprender com ela e seguir em frente; se não entendermos, não seremos capazes de avançar como nação.
A memória tem um papel nesse processo?
Se aprende muito sobre um país pelo o que é lembrado, mas se aprende ainda mais pelo que é esquecido — e muitas vezes se esquece justamente da negritude. É muito importante que essas memórias sejam preservadas. Se você apagá-las, as pessoas também serão apagadas. E o que as memórias fazem é justamente humanizar a história. Como historiador, sempre digo que parte do meu trabalho é garantir que os antepassados nunca sejam esquecidos.
Como é ser o 1º dirigente negro da Smithsonian?
Vou lhe contar uma história. Não sou muito bom em dizer que fiz isso ou aquilo. Sempre que as pessoas dizem coisas boas a meu respeito, respondo que faço parte de uma equipe maior. Mas um dia, duas idosas negras vieram me elogiar, e eu hesitei, então uma delas me interrompeu e disse: “Você não tem o direito de não nos deixar agradecê-lo, porque o que estamos fazendo é agradecer a você e a todas as pessoas que não tiveram essa chance”. Desde então, reconheço que carrego uma oportunidade de garantir que as pessoas que não tiveram essa mesma chance a tenham no futuro.
O senhor acredita em um futuro mais inclusivo?
Acho que é impossível ser um bom historiador sem ter esperança, porque você vê que seus ancestrais foram escravizados, linchados, violentados, mas também vê sua luta, seja exigindo educação, protestando nas ruas ou organizando eleitores. Quando penso nos negros e nas batalhas que eles enfrentam nos EUA, sempre me surpreendo com o fato de acreditarem num país que não acredita neles. Não há uma marcha linear para o progresso, mas acredito que, não importa o quanto a estrada seja curva, se estivermos vigilantes e dispostos a “agir, agir, agir”, como disse [o abolicionista] Frederick Douglass, chegaremos a um lugar em que o país será mais livre e justo.
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