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Colombiana vende poema por R$ 60 mil em leilão: 'Minha missão é apresentar a poesia como uma obra de arte'

Pela primeira, um texto de um poeta vivo é vendido na famosa casa de leilões Sotheby’s; comprador é brasileiro

Agência O Globo - 16/06/2024
Colombiana vende poema por R$ 60 mil em leilão: 'Minha missão é apresentar a poesia como uma obra de arte'

A perspectiva de ganhar a vida escrevendo poesia é tão absurda que não é comum que poetas sãos reivindiquem sua arte como meio de subsistência. Sim, isso acontece em outras disciplinas. Por exemplo, no mundo da representação há uma elevada porcentagem de profissionais que necessitam de empregos alimentares (o estereótipo do ator-garçom) para além da sua vocação, e frequentemente ouvimos as suas exigências no palco público. Mas é tão normal que a poesia não renda sustento, que acaba sendo improvável ouvir um poeta trazer esta pauta.

Não é o caso da poetisa colombiana Ana María Caballero, de 42 anos, recentemente radicada em Madri depois de uma longa passagem pelos Estados Unidos: “Quero mudar essa dinâmica, parar de pensar que um poeta não pode viver da sua livros, que precisa de um salário extra, mesmo que tenha ganhado o Prêmio Nobel”, explica. “Quero questionar a forma como a sociedade valoriza a poesia.” Parece bom, claro. Mas como seria isso? Caballero é direta em sua estratégia: “Minha missão é apresentar a poesia como uma obra de arte”, diz ela, “se nós, poetas, assumirmos os meios da arte contemporânea, poderemos estar em igualdade de condições com qualquer outro artista”.

Entre esses meios está a tecnologia. Por exemplo, a venda de poemas em formato NFT (Non Fungible Token), forma como a arte tem sido comercializada no mundo digital nos últimos tempos. Uma tecnologia que produz objetos únicos na era da reprodutibilidade técnica, como diria Walter Benjamin: gera algo como originais de coisas que podem ser replicados infinitamente. De uma imagem. De uma música. Ou um poema. Para isso, é utilizada tecnologia blockchain complexa. “Normalmente não entendemos como funcionam nossas células ou nosso iPhone, nem precisamos entender os detalhes de como funciona o blockchain... basta integrá-lo ao nosso dia a dia”, diz Caballero. A colombiana é uma das fundadoras da galeria digital de poesia theVERSEverse.

Assim, um poema pode ser replicado infinitamente na internet, mas apenas um deles é a obra de arte original. Caballero vendeu seu poema "Cord" na Sotheby's por 11 mil euros (cerca de R$ 63 mil) a um colecionador brasileiro que o levou em leilão. O texto, em inglês, de sua coleção de poemas "Mammal", explora as relações entre fenômenos biológicos e culturais, “entre a ecologia e as narrativas que criamos para explicá-la (e assim contê-la)”, segundo a autora. Foi a primeira vez que um texto de um poeta vivo foi vendido na famosa casa de leilões, além de manuscritos de autores canônicos como Emily Dickinson ou Walt Whitman. É um bom começo: a poesia nunca foi tão valorizada, pelo menos economicamente. “Com isso posso esperar viver da minha prática criativa”, afirma o poeta-artista.

Caballero também segue os canais habituais do gênero, por exemplo, com a coletânea de poemas "Entre Domingo e Domingo" (edições Valparaíso), um livro em formato tradicional sobre a rotina da vida em várias cidades cidades, e com o qual ganhou o Prêmio Centro Nacional de Poesia José Manuel Arango na Colômbia. Seu livro "Mammal" ganhou o Prêmio de Poesia Steel Toe Books 2022. A videoperformance "Waiting Room", baseada num poema da coletânea, foi apresentada no dia 20 de maio no espaço madrileno Cupra City Garage.

“Com a inteligência artificial, a linguagem se torna visual. A linguagem geralmente gera imagens na sua cabeça, mas não são imagens estáticas, como as permitidas pela IA. É uma inversão da forma como comumente interagimos com as imagens, descrevendo-as com palavras e não o contrário”, afirma a artista.

Outro de seus trabalhos com inteligência artificial generativa, baseada em performance, chama-se Paperwork. Durante seus recitais em 2023, em diversos lugares do mundo, Caballero convidou o público a escrever palavras em folhas de papel em resposta aos seus versos e reuniu essas palavras para criar esculturas, algo como poemas táteis e tridimensionais. Os artefatos são fichas, imagens semelhantes a moedas antigas, feitas com inteligência artificial cujas gravuras contam histórias relacionadas à vida doméstica, à gravidez, à família, mas de um ponto de vista contemporâneo que desafia a tradição e que contrasta com sua antiguidade e aparência.

O livro "O Desejo "contém apenas um poema, de mesmo nome, impresso 197 vezes nas suas páginas, e que só foi editado uma vez: é um livro único e que lhe confere uma qualidade mais escultural do que livresca. “Trata-se de refletir o valor cultural da poesia: isso gera uma certa noção de escassez na literatura, como se fosse uma peça única”, afirma a artista. Os GTN, como os propostos por Caballero, continuam a conquistar o seu lugar, no típico processo de liquidação que as novas tecnologias exigem. “Os colecionadores que não incluem NFTs em suas coleções estão perdendo um momento histórico, um Renascimento digital, uma interação em torno da arte que não existia. Até os museus estão começando a colecionar NFTs”, finaliza.