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Negro, elegante, sensual: quem é o 'Doctor Who' do século XXI

Depois do sucesso em 'Sex education', o carismático Ncuti Gatwa assume o protagonista da clássica série

Agência O Globo - 15/06/2024
Negro, elegante, sensual: quem é o 'Doctor Who' do século XXI

"Já deu! Essa roupa já deu!", disse Ncuti Gatwa com uma gargalhada desenfreada. O novo Doctor Who estava filmando a mesma cena havia horas em Cardiff, País de Gales, onde espaços semelhantes a hangares estavam repletos de equipe e repletos de cenários e equipamentos. Agora, a pedido do diretor, o Doctor estava improvisando. Gatwa ri muito, e muitas vezes de si mesmo.

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— Por que continuo movendo este banquinho? — ele perguntou alguns minutos depois enquanto tentava se posicionar para mais uma tomada.

— Porque o departamento de arte não está aqui para fazer isso por você — provocou Varada Sethu, que se junta ao Doutor e sua atual companheira Ruby Sunday (Millie Gibson) para algumas aventuras na segunda temporada de Gatwa.

— Eu tenho que fazer tudo sozinho! — Gatwa gritou em tom fingido e trágico, antes de outra erupção de alegria.

Nascido em Ruanda e criado na Escócia, Gatwa, 31 anos, fez seu nome interpretando o efervescente Eric em “Sex Education”, da Netflix. Mas o papel principal em “Doctor Who”, uma instituição britânica sobre um alienígena que viaja no tempo e seu companheiro humano, que é um clássico da BBC há 60 anos, levou-o a outro nível de fama.

(Convenientemente, o Doutor morre periodicamente e é regenerado em uma forma física diferente; Gatwa é o 15º Doutor, seguindo Matt Smith, David Tennant e Jodie Whittaker.)

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O programa, que foi exibido pela primeira vez entre 1963 e 1989, foi retomado em 2005. Hoje, tem uma base de fãs intergeracional excepcionalmente diversificada. Mas a temporada atual, que termina em 21 de junho, inaugurou uma nova era para o programa, com a Disney+ agora como coprodutora, ao lado da BBC, e Gatwa, o primeiro ator negro principal do programa, com uma vibração distintamente fabulosa.

As pressões e expectativas em torno destes primeiros passos não passam despercebidas a Gatwa, que cresceu num lar da classe trabalhadora em Dunfermline, na Escócia.

— "Doctor Who" é algo de que me lembro quase (desde sempre), algo que sabíamos que era importante culturalmente, como a realeza.

Ele disse que seu teste para o papel “foi adorável", mas não achou que conseguiria:

— O elenco britânico demorou muito para se diversificar. Por que seria agora e por que eu?

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A ansiedade que ele sentiu em “fazer certo e fazer jus às pessoas incríveis que fizeram esse papel” durou durante as filmagens da primeira temporada, disse Gatwa.

— Gradualmente, ficou claro para mim que não existe um molde que você precise seguir para retratar o Doutor — disse ele. — Isso pode sair de você naturalmente.

Russell T Davies, que está de volta como showrunner de “Doctor Who” depois de planejar a retomada de 2005, disse que embora o aumento do orçamento de produção tenha permitido mais efeitos especiais, “ainda sou eu sentado com um roteiro, fazendo bons diálogos para os atores”.

No passado, acrescentou, o Doutor “foi maravilhosamente enigmático e estranho, e grandes atores fizeram isso muito bem”. Mas, em 2024, “quero que um público jovem assista e fale sobre suas emoções, expresse-as de forma saudável”.

Então, “veio Ncuti, que é um daqueles atores que transbordam sentimentos”, disse Davies:

— Quando ele está triste, lágrimas escorrem de seus olhos; quando ele está feliz, aquele sorriso ilumina o universo.

Os espectadores que assistiram ao Doutor de Gatwa lutar contra o Maestro (Jinkx Monsoon), apresentar uma música e um número de dança, ficar em uma mina terrestre durante um episódio inteiro e vestir-se com trajes de época para um episódio com tema “Bridgerton” provavelmente concordarão. Ele “realmente se sente como um Doctor Who do século XXI”, escreveu Maya Phillips no The New York Times. Ele é “elegante e liberado”, acrescentou ela, “com uma vibração sensual; ele é um médico que parece muito mais à vontade do que os outros em seu corpo.”

O papel do acompanhante geralmente é “ter as qualidades humanas que faltam ao médico”, disse Gibson, mas a relação entre esse médico e o acompanhante que ela interpreta parece diferente.

— A juventude de Ruby permite que ele libere sua criança interior. Você vê que Ruby e o Doutor realmente se importam um com o outro; a maneira como eles se comunicam e riem é muito amorosa. Gatwa é uma força da natureza, simplesmente mágica — acrescentou ela. — Ele tem uma aura da qual tudo pode se alimentar.

Fuga do genocídio

Nascido em Kigali, capital de Ruanda, Gatwa tinha 2 anos quando os seus pais — uma jornalista e um gestor de banco — se mudaram para a Escócia com os três filhos para escapar do genocídio em Ruanda, em 1994. Ele fez teatro no ensino médio e teve um momento incrível interpretando o Comandante Khashoggi em sua produção escolar de “We Will Rock You”. Ele caiu na gargalhada ao lembrar disso:

— Eu devia estar MUITO ruim! Mas pensei: é isso o que eu quero fazer.

Gatwa disse que sua família “era uma das três famílias negras que conhecíamos, tipo, em toda a Escócia". Mas não tinha dúvidas, disse, que haveria um caminho para ele no teatro:

— Sempre via um ator negro trabalhando.

Ele passou três anos no Conservatório Real da Escócia e depois um ano de pós-graduação no Dundee Repertory Theatre. Continuou interpretando Mercúrio em “Romeu e Julieta” no Home Theatre em Manchester, Inglaterra (“onde vi um fantasma — eu juro”), e depois papéis em “Shakespeare Apaixonado” no West End e em “946” de Emma Rice.

Gatwa “é obviamente uma das pessoas mais bonitas e carismáticas que você já conheceu”, disse Rice em uma conversa por vídeo:

— Mas ele também tem uma profundidade emocional fenomenal que trouxe para cada ensaio e cada apresentação, uma ética de trabalho incrível e uma habilidade incrível de falar com o público.

Depois de “946”, Gatwa ficou repentinamente sem trabalho e sem dinheiro, trabalhando como temporário na Harrods, uma loja de departamentos, para sobreviver. Ele estava dormindo no oitavo mês no apartamento de seu melhor amigo quando conseguiu o papel do Capitão Jack Absolute em uma produção de “The Rivals”, de Richard B. Sheridan. Então veio a chamada para um teste para “Sex Education”.

'Sex education', a virada

Quando conseguiu o emprego, disse ele, seu pensamento principal era que poderia pagar as contas atrasadas. Ele quase não havia feito nenhum trabalho no cinema antes, mas descobriu que o espetáculo, com seu elenco, não parecia muito diferente de um grupo de teatro.

— Eu nunca tinha conhecido alguém como ele antes, tão cheio de vida, experiência e tão animado — disse Emma Mackey, uma de suas coestrelas. — Ele aproveitou o espaço oferecido e cresceu nele; éramos uma aliança, mas Ncuti realmente nos liderou nesse estado de espírito.

Gatwa disse que interpretar Eric, um adorável adolescente gay de uma família religiosa britânica nigeriana, durante quatro temporadas, o ensinou a ser mais corajoso.

— Eric era tão dedicado à sua autenticidade, vivendo sua verdade, que isso permeou minha vida — disse.

Quando “Sex Education” terminou, Gatwa desempenhou papéis coadjuvantes em “Masters of the Air” e “Barbie”, e um dia mandou uma mensagem para seu agente, dizendo que “adoraria interpretar Willy Wonka ou Doctor Who”. Ela respondeu que o diretor de elenco de “Doctor Who”, Andy Pryor, acabara de convidá-lo para um teste.

— Parece uma história do showbiz, mas a última pessoa que vimos foi Ncuti, e bang! — Davies disse. — Eu sabia naquele momento que aquele era o cara.

Gatwa disse que ele e Davies não tiveram muitas discussões sobre sua interpretação do Doutor.

— Este é um personagem que nasce constantemente de novo, com novos olhos. Há um elemento de inocência dentro do Doutor. Para mim, é daí que vem a curiosidade dele, a confiança para explorar o desconhecido da mesma forma que as crianças fazem — afirmou o ator.

Quando questionado se ele incorporou conscientemente mais elementos LGBTQ+ na primeira temporada de Gatwa, Davies apontou que vem colocando personagens gays na tela há cerca de 30 anos.

— Nunca tivemos uma reunião sobre sexualidade. E o Doutor é um alienígena, é claro – ele não é Ncuti Gatwa, e acho que os rótulos humanos dificilmente se aplicam a ele. Ele ama Ruby de todo o coração. Ele não se importa com o gênero das pessoas.

Gatwa teve outra opinião:

— Eu sinto que o Doctor Who sempre foi um pouco exagerado. Quero dizer, é um alienígena que viaja no tempo em uma cabine da polícia britânica!