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Entenda o avanço da extrema direita na eleição para o Parlamento Europeu

Guinada conservadora é motivada por crise econômica, política e imigração; analistas apontam para 'normalização' da ultradireita e domínio das redes como diferenciais

Agência O Globo - 10/06/2024
Entenda o avanço da extrema direita na eleição para o Parlamento Europeu
Entenda o avanço da extrema direita na eleição para o Parlamento Europeu - Foto: Reprodução / agência Brasil

Em 2000, uma onda de choque atingiu a Europa: o Partido da Liberdade da Áustria (FPO), fundado em 1956 por ativistas nacional-socialistas, tinha entrado no governo. Liderado por Jörg Haider (1950-2008), figura que se destacou por elogiar as políticas trabalhistas de Hitler, o partido tinha acabado de alcançar o melhor resultado para qualquer sigla de extrema direita numa democracia europeia desde a Segunda Guerra Mundial. A condenação internacional foi rápida, e líderes acreditavam que a experiência austríaca era uma aberração. Passados 24 anos, e após quatro dias de votação para o Parlamento Europeu, no entanto, os eleitores confirmaram uma nova guinada à direita. O que mudou?

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Segundo estudo da Universidade de Princeton citado pelo Guardian, os partidos dessa linha ideológica permanecem radicais como sempre – e pesquisas mostram que os eleitores não confiam menos nos políticos e parlamentos do que há três décadas, tampouco estão menos satisfeitos com o funcionamento da democracia. A mudança, nesse sentido, ocorreu a partir da aproximação entre partidos e eleitores. Conforme escrito pelo cientista político Matthijs Rooduijn ao jornal britânico, níveis mais altos de educação fizeram com que indivíduos passassem a fazer escolhas políticas independentes, não mais necessariamente relacionadas aos seus círculos sociais – uma espécie de “desalinhamento”.

Mas, se por um lado a individualização colaborou para que eleitores se libertassem dos alinhamentos políticos existentes, “a globalização contribuiu para o ‘realinhamento’ (novos alinhamentos entre eleitores e partidos). Aqueles que se beneficiaram das fronteiras abertas da Europa – os ‘vencedores da globalização’ altamente educados – contrastavam fortemente com os que se sentiam ameaçados econômica e culturalmente por essas mudanças”, escreveu Rooduijn. A imigração, nesse sentido, tornou-se um tópico-chave em campanhas eleitorais e debates públicos, atraindo atenção para siglas de extrema direita.

— Os diferentes partidos de extrema direita em toda a Europa têm uma posição compartilhada sobre identidade, imigração e o Islã, e é também onde eles estão convergindo cada vez mais com a centro-direita — disse Hans Kundnani, pesquisador visitante no Remarque Institute da Universidade de Nova York, ao Washington Post.

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Ironicamente, o impulso das siglas de extrema direita veio também dos próprios partidos tradicionais. De acordo com a análise de Rooduijn, à medida que essas organizações se tornaram mais bem-sucedidas, os partidos tradicionais de direita sentiram a ameaça, uma vez que os ganhos eleitorais da extrema direita muitas vezes ocorreram às custas dos votos de partidos consolidados. Como resposta, siglas mais “moderadas” passaram a incorporar ideias da ultradireita em suas próprias políticas para tentar reconquistar votos – o que na prática pode ter levado a mais votos para a extrema direita. Ao copiar algumas das pautas, os partidos tradicionais legitimaram seus concorrentes.

Crise política e a mídia

A ascensão da extrema direita emerge, ainda, de uma crise política. Para o crítico e escritor britânico K. Biswas, os representantes encarregados de estabilizar o continente europeu após a crise financeira global de 2007-08 buscaram desviar a narrativa política de sua própria culpabilidade. Líderes europeus começaram a reavaliar os benefícios da imigração para seus países – iniciando debates sobre “identidade nacional” (caso do ex-presidente francês Nicolas Sarkozy), rejeitando a composição “multiétnica” dos estados-nação (visto com o ex-primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi) e proclamando a morte do multiculturalismo.

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Somado a isso, segundo o European Institute of the Mediterranean (IEMed), a ascensão dos líderes de extrema direita atualmente também possui grande influência do domínio da mídia. Steve Bannon, o estrategista do ex-presidente americano Donald Trump que acumulou considerável influência no conservadorismo europeu – e chegou a abrir um escritório na Itália para aconselhar políticos da ultradireita – disse que “a verdadeira oposição é a mídia”. Isso significa que, na prática, o método utilizado por representantes da extrema direita inclui agir “como se estivesse em uma campanha eleitoral sem fim”, especialmente nas redes sociais: é lá que os termos do debate são definidos.

“Vale tudo para radicalizar o discurso: a ameaça de um grupo terrorista (ainda que este já tenha sido desmantelado), multiculturalismo, o direito de portar armas, liberdade religiosa, controle sobre o que é ensinado nas escolas e universidades, pensões, violência de gênero e direitos das mulheres, incluindo o aborto. Essas questões são difíceis de lidar, mas não importa. A chave é trivializá-las. Quanto mais simples a abordagem, maior o impacto”, escreveu o IEMed. Veículos de mídia de extrema direita ganham audiência e dinheiro com essa estratégia, classificada pelo jornal britânico The Economist como “o negócio da indignação”.

Jovens eleitores

Se a imagem do típico eleitor da extrema direita na Europa era a de um homem branco, sem diploma universitário e mais velho, uma reportagem do Guardian mostrou que isso também está mudando: estudos sugerem que, em vários países no continente, o apoio aos partidos mais à direita tem crescido mais rapidamente entre os mais jovens. Analistas ouvidos pelo jornal ressaltam que o resultado não é totalmente explicado pelo alinhamento cultural ou ideológico, mas pela precariedade das condições de vida. Questões como moradia e qualidade de saúde têm sido cada vez mais relevantes para os eleitores nesse cenário, pontuou Catherine de Vries, cientista política da Universidade Bocconi, na Itália.

— Não sou racista porque votei no [político de extrema direita Geert] Wilders. Me frustra que os migrantes recebam mais ajuda do governo do que os holandeses. Não sou contra o Islã, nem quero que as mesquitas sejam fechadas. Só acho que precisamos controlar melhor a imigração — disse um jovem eleitor de 19 anos ao Guardian. — Ainda moro com meus pais, não posso pagar um quarto em Amsterdã. Wilders quer dar moradia às pessoas que são daqui. Não acho isso estranho.

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Os analistas alertam, contudo, que os partidos de extrema direita ainda não são a opção preferida – ou mesmo a segunda escolha – para os eleitores mais jovens em toda a Europa. A tendência parece ser mais forte em países como Áustria, Alemanha, Holanda, Suécia e Dinamarca. De acordo com Pawel Zerka, pesquisador do Conselho Europeu de Relações Exteriores, nesses lugares, os jovens não se moveram para a direita em relação à migração, aborto ou direitos das minorias, mas, motivados pela insegurança econômica, foram convencidos de que partidos de extrema direita oferecem uma alternativa econômica credível.

— Estamos vendo também o crescimento de um esforço concentrado da extrema direita para alcançar e radicalizar os jovens — disse Vries. — [Além] da normalização. Para muitos desses jovens eleitores, os partidos de extrema direita têm sido parte do cenário político durante toda a vida deles. Não há mais a estigmatização de antes.

O tabu sobre a extrema direita no governo, portanto, tem sido cada vez mais quebrado: os partidos tradicionais hoje cooperam com aqueles antes considerados “tóxicos”, e em alguns casos estes últimos são até mesmo convidados a participar de coalizões para apoiar conservadores tradicionais incapazes de vencer maiorias parlamentares. Não mais ridicularizados por seus rivais de direita, os partidos de extrema direita agora são capazes de vencer eleições: sondagens sugerem que eles podem garantir cerca de 20% dos assentos do Parlamento Europeu após a última votação – um aumento de quatro vezes desde o início da década de 1990. (Com New York Times)