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Tribunal da Espanha reduz pena de agressor sexual de menina cigana: 'casam-se a partir dos 12 anos'

Decisão do Tribunal Provincial de Leão foi condenada por advogados e defensores dos direitos humanos, que alegam que atenuante sobre consentimento foi mal aplicada

Agência O Globo - 30/05/2024
Tribunal da Espanha reduz pena de agressor sexual de menina cigana: 'casam-se a partir dos 12 anos'
Tribunal da Espanha reduz pena de agressor sexual de menina cigana: 'casam-se a partir dos 12 anos' - Foto: Reprodução/internet

A circunstância atenuante que o Tribunal Provincial de Leão, na Espanha, aplicou a um triplo agressor sexual provocou indignação entre advogados especialistas em casos de violência sexual contra menores de idade. Na condenação de um jovem de 24 anos, pela agressão sexual de uma menina de 12 anos, o tribunal considerou que eles tinham “um relacionamento” anterior. E, embora considere comprovadas pelo menos três agressões sexuais — a menor teve três filhos, em 2018, 2019 e 2021 —, aponta que as relações foram consensuais já que, segundo o acórdão, “nos costumes ciganos, as meninas se casam a partir dos 12 anos” e que a menor, “apesar da pouca idade, sabia o que eram as relações sexuais e as suas consequências”. O tema tem suscitado críticas da própria comunidade cigana, que assegura que um acontecimento deste tipo não corresponde em nada à sua cultura.

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O Superior Tribunal de Justiça de Castela e Leão publicou um comunicado, na terça-feira, para justificar os fundamentos da redução da pena concedida pelo tribunal provincial — de 37 anos para 8 anos e 9 meses —, que a própria Procuradoria solicitou durante o julgamento, modificando as suas conclusões iniciais. O órgão argumenta que “em certos casos muito específicos de relações sexuais mantidas de forma totalmente consensual por um jovem maior de idade e por um menor de 16 anos, reduzem a pena do acusado através da aplicação de uma circunstância atenuante analógica altamente qualificada". Os magistrados destacam o consentimento entre as partes e jurisprudências semelhantes, acrescentando que “a sentença do Tribunal Provincial de Leão foi proferida após reconhecimento dos fatos e redução da pena por parte do Ministério Público, com a qual concordaram com o resto das acusações” e que “devido ao princípio acusatório, o tribunal não poderia impor pena maior”. A sentença, que ainda não transitou em julgado, cabe recurso na Câmara Cível e Criminal.

O comunicado do órgão superior ainda acrescentou que “as referidas relações foram consensuais, pois segundo os costumes ciganos, as meninas casam-se a partir dos 12 anos e, um ano antes, começaram a ter relações sexuais completas, sabendo que poderiam engravidar e conhecer a repercussão direta dos atos de natureza sexual”. Aponta também que o Código Penal pune as relações sexuais com menores de 16 anos — a idade de consentimento sexual em Espanha — mas exclui a responsabilidade criminal "quando o autor do crime é uma pessoa próxima ao menor em idade e grau de desenvolvimento ou maturidade física e psicológica".

Violeta Assiego, advogada, ativista de direitos humanos e ex-diretora geral dos direitos da criança e do adolescente do Ministério dos Direitos Sociais e da Agenda 2030 do Governo da Espanha, considerou a decisão do tribunal e as explicações do órgão superior uma aberração.

— A avaliação da circunstância atenuante é muito lamentável, porque quando foi introduzida [na lei] foi feita para avaliar e contextualizar a realidade de relações sexuais em idades muito precoces, entre iguais, e de se entre agressor e agredido podia haver certa semelhança de idade e maturidade. Alguma semelhança é um espaço de alguns anos, não de 12 — disse Violeta.

A advogada ainda acrescentou que a sentença do tribunal tenta justificar-se em outra decisão controversa, do Tribunal Provincial de Salamanca, em 2012, em um crime de violência doméstica e de gênero, que também utiliza circunstância atenuante alusiva à cultura cigana, juntamente com outros elementos como a relação entre duas pessoas que já tiveram um namoro anterior.

— Para mim, o erro é modificar uma circunstância atenuante relacionada à simetria de idade para reforçar um estigma sobre a cultura cigana — completou.

Ainda de acordo com Violeta, a interpretação jurídica neste caso é “completamente arbitrária e forçada”, feita para “justificar que dentro da cultura cigana estas relações são comuns”. Ela cita dois elementos que descreve como muito graves. O primeiro, que estigmatizar a cultura cigana é "injusto e discriminatório", mas que também se fez sem nenhuma base.

— Não chamaram nenhum perito, nenhuma organização, não encomendaram nenhum relatório pericial, chegam a estas conclusões com base nas suas crenças particulares, não as contrapõem. Isso é uma aberração — disse.

A segunda razão apontada pela especialista é que a decisão do tribunal provincial contraria o Tribunal Supremo na hipótese de sobrepor o elemento cultural.

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— Há jurisprudência que indica que o respeito pelas tradições e pelas culturas tem como limite intransponível o respeito pelos direitos humanos que funcionam como o denominador mínimo exigido em todas as culturas, tradições e religiões — completou.

Segundo Assiego, faz-se uma interpretação “completamente arbitrária e forçada” para “justificar que dentro da cultura cigana estas relações são comuns”. Ela acredita, em particular, que há dois elementos que descreve como muito graves. A primeira, que “estigmatizar desta forma a cultura cigana é injusto e discriminatório, mas também se faz uma afirmação sem qualquer fundamento. Não chamaram nenhum perito, nenhuma organização, não encomendaram nenhum relatório pericial, chegam a estas conclusões com base nas suas crenças particulares, não as contrapõem. Isso é uma aberração.”

O segundo elemento, que o Tribunal Provincial “venha a contrariar o Tribunal Supremo na hipótese de poder haver um elemento cultural a valorizar”, porque, acrescenta, “há jurisprudência que indica que o respeito pelas tradições e pelas culturas tem como limite intransponível o respeito pelos direitos humanos que funcionam como o denominador mínimo exigido em todas as culturas, tradições e religiões.”

Ou seja, mesmo que exista, como diz a decisão, uma cultura que normaliza os casamentos infantis e as relações sexuais com meninas de 12 anos, o Supremo Tribunal é claro sobre isso quando fala de linhas vermelhas intransponíveis. Não importa se o menor de 16 aceitou ou não o ato sexual — ainda assim é uma agressão.

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Na Espanha, segundo estimativas da Fundação do Secretariado Cigano, a comunidade cigana é composta por cerca de 750 mil pessoas. Carmen Santiago, advogada criminal com 30 anos de experiência, também considera a decisão muito séria.

— Embora não tenhamos dúvidas de que a circunstância atenuante foi aplicada de forma bem intencionada, é um erro gravíssimo que afeta não só esta menor, mas também a própria população cigana e toda a sociedade espanhola. É um ultraje que rejeitamos absolutamente. Os efeitos são perversos e o que a sentença revela são os preconceitos que existem contra a população cigana. O Código Penal deve ser aplicado igualmente a todos, tal como o resto do sistema jurídico — disse a advogada.

Ela também descartou a existência de casamentos infantis na cultura cigana, como apresentado na decisão.

— Para casar, é preciso ter essa idade [16 anos], aliás, nós, na Federação [Nacional das Associações de Mulheres Ciganas Kamira, da qual é presidente], fizemos um pedido para aumentar para 18, justamente para desencorajar o casamento precoce. Uma menor de 12 anos não pode dar qualquer tipo de consentimento. Não estamos falando de dois adolescentes de 14 e 15 anos, mas sim de uma menina e de um adulto de 24 anos, o dobro de sua idade — disse.

Manuela Torres, advogada especialista em violência sexual contra menores, também considera a decisão uma vergonha.

— Afirmar que pertencem à etnia cigana não pode ser um argumento válido na lei, porque uma menina de 12 anos não pode apresentar consentimento válido, por mais que culturalmente o vejam como normal ou que a menina diga que o amava e que ela estava feliz. Felizmente, em nossa lei não existe tal argumento. As meninas ciganas não precisam ser tratadas de forma diferente das outras meninas — disse.

Sobre a suposta proximidade de idade, dá um exemplo simples.

— Aos 12 anos, uma menina está na sexta série. Aos 24 anos, um garoto já se formou na universidade. Como eles vão ter o mesmo grau de desenvolvimento ou maturidade?