Internacional
África do Sul realiza eleição crucial, mas jovens eleitores falam em desilusão com política do país 30 anos após o apartheid
Participação eleitoral tem diminuído nos últimos anos, e nova geração aponta partido no poder como responsável pela falta de emprego, alta criminalidade e economia arruinada

No alvorecer da democracia sul-africana, após a queda do governo racista do apartheid, milhões de pessoas fizeram fila antes do nascer do sol para votar na primeira eleição livre do país, em 1994. Trinta anos depois, a África do Sul se prepara agora para uma eleição crucial nesta quarta-feira, na qual os eleitores determinarão qual partido (ou aliança) escolherá o presidente. A participação eleitoral, porém, tem diminuído consistentemente nos últimos tempos: ela caiu para menos de 50% pela primeira vez nas eleições municipais de 2021, e o registro eleitoral não acompanhou o crescimento da população em idade de votar.
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Esta curva decrescente refletiu no apoio ao partido governante do país, o Congresso Nacional Africano (CNA), que foi um movimento de libertação antes de se tornar uma máquina política. Pesquisas mostram que a sigla poderá perder a maioria absoluta pela primeira vez desde que assumiu o poder em 1994, sob a liderança de Nelson Mandela, e a nova geração indica o motivo. Sem a experiência vivida do apartheid nem a ligação emocional com o partido, o CNA tornou-se tudo o que eles conhecem como governo. Por isso mesmo, o partido é apontado como responsável pela falta de emprego, alta criminalidade e economia arruinada.
— A mudança ou substituição geracional finalmente afetou o CNA — disse Collette Schulz-Herzenberg, professora associada de Ciência Política na Universidade de Stellenbosch, na África do Sul.
A África do Sul não é exceção às tendências: estudos mostram que eleitores da geração Z e os millennials em muitos países perderam a confiança no processo democrático, mesmo que continuem preocupados com questões como mudanças climáticas e a economia. Mas no país sul-africano, onde a idade média é de 28 anos, os jovens representam mais de um quarto dos eleitores registrados numa população de 62 milhões de habitantes. Ainda assim, apenas 4,4 milhões dos 11 milhões de civis com idades entre 20 e 29 anos se registraram para votar nesta eleição, segundo a Comissão Eleitoral Independente do país.
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O órgão organizou campanhas nacionais para persuadir mais jovens a se registrarem, e os dados mostram um aumento encorajador no registro de eleitores entre 18 e 19 anos que votarão pela primeira vez nesta eleição: agora serão 27%, em comparação com 19% na última eleição. Mas o New York Times conversou com jovens de todo o país, e eles disseram que não participariam do pleito. A decisão representa uma repreensão política ao Congresso Nacional Africano, mas também indica que os muitos partidos da oposição não conseguiram conquistá-los.
“Estamos criando uma geração de jovens dependentes” — Athenkosi Fani, 27 anos.
Durante toda a sua vida, Athenkosi Fani dependeu do governo, e ele odeia a sensação. Estudante de pós-graduação, ele frequentou universidades nomeadas em homenagem a personalidades do CNA, mas sua infância foi trágica, agravada pela pobreza persistente na província do Cabo Oriental, onde cresceu. A mãe dele recebia um subsídio social quando ele nasceu — pagamento que representa o meio de sobrevivência para mais de um terço das famílias no país, uma situação que os políticos do CNA frequentemente recordam aos eleitores. Aos 11 anos, Fani foi colocado num orfanato porque sua mãe não pôde mais cuidar dele.
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Para frequentar a universidade, ele contou com a ajuda financeira do governo. Um líder provincial do CNA comprou um computador para ele e financiou sua participação numa iniciação tradicional de um mês para jovens, um importante rito de passagem na região. Ativista LGBTQ+ desde a adolescência, ele chegou a viajar para os Estados Unidos para participar de uma conferência do Lion’s Club para jovens líderes promoverem a democracia, e trabalhou brevemente como voluntário do CNA. Todas essas experiências fizeram dele um embaixador ideal para questões da juventude, mas também geraram um ressentimento.
— Ainda acredito na democracia — disse Fani, que contou ter votado de má vontade no CNA nas últimas eleições como sinal de gratidão. — Não quero que nenhuma organização tenha tanto poder.
“A criminalidade diminuiria se empregassem as pessoas” — Shaylin Davids, 23 anos.
No fundo, Shaylin Davids sabe que faz parte do problema. Ela contou que era boa na escola, e chegou a se formar no ensino médio. No entanto, usou toda a sua inteligência para traficar drogas em vez de frequentar a universidade. Na véspera do último Ano Novo, porém, um tio com quem ela tinha uma relação próxima foi assassinado, e agora ela deseja virar a página. Neste ano, começou um curso de informática num centro comunitário na esperança de conseguir um emprego.
A avó de Davids disse a ela que os jovens como ela, no seu bairro, tinham melhores perspectivas durante o apartheid. A jovem é “coloured”, termo ainda utilizado para designar os sul-africanos multirraciais, cerca de 8% da população. No passado, sob o regime racista, os sul-africanos coloured tinham melhor acesso a empregos em fábricas e comércio do que os negros. Como muitos outros no país, ela se sente deixada para trás por um governo majoritariamente negro — e culpa as políticas afirmativas do CNA, que “favorecem negros”, por reduzir suas oportunidades.
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O sentimento persiste, apesar do fato de que a taxa de desemprego dos sul-africanos negros ser de 37%, em comparação com os 23% de pessoas coloured no país. Isso tem sido suficiente para aumentar o apoio a partidos políticos com base étnica. A desinformação é abundante, e ela e os seus amigos ouviram rumores de que, caso se registassem, os seus votos iriam automaticamente para o CNA. E mesmo sem isso, ela não vê como seu voto pode mudar o país. “Não quero votar porque o meu voto não vai contar”, pontuou ela, acrescentando que, no final do dia, “o partido no poder vai continuar a ser o CNA”.
“Dizem que não se pode fazer mais nada nesta terra” — Dylan Stoltz, 20 anos.
Quando Dylan Stoltz compartilhou seus sonhos para a África do Sul com outros jovens sul-africanos brancos, eles riram dele. Seu otimismo parece estar em contradição com Carletonville, cidade mineradora a 74 km de Joanesburgo. Com o fim do apartheid e o colapso da mineração, a sorte mudou para homens como ele. No passado, seu avô tinha uma fazenda e um emprego numa mina de ouro. Hoje, Stoltz trabalha como frentista numa loja de suprimentos agrícolas. Seu padrasto arranjou um emprego melhor para ele no Canadá, onde planeja ir no próximo ano. Apesar disso, ele afirma não querer deixar seu país permanentemente.
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Desde 2000, o número de sul-africanos vivendo no exterior quase dobrou para mais de 914 mil, segundo dados do censo. Seu plano é trabalhar o máximo que puder no Canadá e ganhar o máximo de dinheiro que conseguir. Então, ele retornará a Carletonville para abrir um negócio e se casar com sua namorada, Lee Ann Botes. Recém-saída do ensino médio, Botes está considerando se tornar uma au pair. Isso lhe daria a oportunidade de viajar e talvez finalmente ver o oceano. Ainda assim, ela também planeja voltar. Ambos acreditam que, independentemente do grau de violência, esta é a casa deles no mundo.
“Quando chega a hora de agir, eles não conseguem” — Shanel Pillay, 24 anos.
Quando menina, Shanel Pillay adorava ir à biblioteca. Era lá que estudava, passava o tempo com amigos e conheceu o menino que se tornaria seu noivo. Hoje, ela diz que não arriscaria a caminhada de 10 minutos até a biblioteca. Como muitos sul-africanos indianos que vivem em Phoenix, uma comunidade majoritariamente indiana fundada por Mahatma Gandhi quando ele morou na África do Sul, Pillay sente que o local passou a ser perigoso. O mesmo ocorreu com a cidade vizinha de Durban, na costa leste do país. A criminalidade a mantém dentro de casa, produzindo vídeos para o TikTok para passar o tempo.
A jovem lembra perfeitamente de se esconder em casa durante vários dias em 2021, quando Durban foi atingida por motins que colocaram sul-africanos negros e indianos uns contra os outros. A violência pôs em evidência como os cidadãos pobres e da classe trabalhadora se sentiam deixados para trás com os progressos feitos desde o fim do apartheid. Sob a política racista, os sul-africanos indianos receberam mais benefícios econômicos do que outros grupos de cor. E, desde o fim do regime, os indianos, que representam 2,7% da população, aproveitaram as oportunidades na educação e no trabalho qualificado.
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“Eu queria ser bem-sucedida, ter minha própria casa, carro, e até uma piscina, embora eu não saiba nadar”, disse ela, que estudava finanças na faculdade até seu padrasto perder a renda durante a pandemia. Na época, ela abandonou a universidade, fez um curso rápido de ensino e começou a trabalhar numa escola particular. “Na África do Sul, você precisa ser independente”, afirmou Pillay, que não vê sentido em votar.
— Quando chega a hora de agir, eles não conseguem.
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