Internacional
Guerra em Gaza e série de crises tiram China de 'zona de conforto' no Oriente Médio
Tensão na região, um dos cenários prioritários da iniciativa Cinturão e Rota, pressiona neutralidade de Pequim
Dentre as grandes potências internacionais com presença no Oriente Médio, a China provavelmente é a que tinha uma posição mais confortável. Com boas relações com todos os atores, investimentos bilionários, de portos israelenses a projetos petrolíferos no Irã, Pequim enfatizava a diplomacia econômica, e dava passos mais ousados no campo político, como na mediação do acordo entre Irã e Arábia Saudita, no ano passado. Mas o ataque do Hamas, em 7 de outubro, mudou as equações regionais, e o país pode se ver forçado a sair dessa zona de conforto. Após o atentado, a China não condenou o grupo terrorista, e tem bloqueado, ao lado da Rússia, ações lideradas pelos EUA para uma reprimenda ao Hamas no Conselho de Segurança da ONU. Ao mesmo tempo, defende um cessar-fogo em Gaza e apoiou resoluções contra interesses de Israel.
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— O que tem acontecido desde outubro é que a China, ao lado da Rússia, integra um bloco político-diplomático que protege o Irã e que, de alguma maneira, ajuda Teerã em vários conflitos internacionais — disse ao GLOBO Maurício Santoro, cientista político e colaborador do Centro de Estudos Político-Estratégicos da Marinha. — Não é que a China apoie o Hamas, mas ela acaba em uma posição muito parecida com a do Brasil nas últimas crises: os dois criticam e condenam o terrorismo formalmente, mas sem citar o grupo.
Abordagem comedida
Hoje, os chineses não participam ativamente das negociações sobre um cessar-fogo — com a exceção de uma iniciativa para aproximar o Hamas e o partido político Fatah, ainda em estágios iniciais —, têm tido uma atuação considerada discreta no envio de ajuda (embora Pequim negue a alegação) e fazem declarações genéricas sobre a pausa dos combates e a solução de dois Estados. Dentro das discussões sobre o futuro de Gaza, o silêncio chinês ecoa alto.
No mês passado, quando uma retaliação iraniana contra Israel, ligada ao bombardeio contra seu consulado em Damasco, parecia iminente, o governo americano pediu a Pequim que persuadisse Teerã a evitar lançar seus mísseis. O ataque veio no dia 13 de abril, e, em comunicado, o governo chinês pediu apenas que “todos os envolvidos” mantivessem a calma.
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— A abordagem da China não é de confrontação; é semelhante ao jogo do Go, muito popular na Ásia, onde a estratégia é dominar lentamente o tabuleiro com movimentos calculados e não confrontacionais. É improvável que a China adote uma postura fortemente incisiva na guerra em Gaza — afirmou o professor de Relações Internacionais Alexandre Coelho, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp). — Em vez disso, continuará promovendo o diálogo e apoiando esforços diplomáticos multilaterais, enquanto busca preservar suas relações e interesses econômicos na região.
De acordo com o Conselho de Estado da China, o comércio entre Pequim e o Oriente Médio teve um salto na última década. Em 2017, o volume negociado foi de US$ 262,5 bilhões (R$ 1,33 trilhão), e chegou a US$ 507,2 bilhões (R$ 2,58 bilhões) em 2022.
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Em termos de investimentos, o Oriente Médio é um dos cenários prioritários da iniciativa Cinturão e Rota, pilar econômico da diplomacia econômica de Pequim. Entre 2015 e 2019, empresas estatais investiram US$ 21,6 bilhões (R$ 110,25 bilhões) na região, sendo que 58% do total em projetos de energia. Daí as relações estreitas com Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e, especialmente, Irã, país que destina 30% de suas exportações para a China.
Na Copa do Catar, em 2022, boa parte da infraestrutura contou com capital chinês e o estádio de Lusail, o maior do país, foi erguido por uma companhia chinesa. No setor da alta tecnologia, Pequim financiou 206 projetos ligados a telecomunicações, conectividade e segurança dos sistemas de informação em 2022 .
— A China age de forma cautelosa devido aos seus muitos interesses econômicos e políticos, inclusive com Israel, no que se refere à indústria de alta tecnologia. Pequim aguarda os movimentos dos EUA e aliados, não querendo ter impactos diplomáticos negativos junto aos países da região, independentemente de serem aliados ou não do Ocidente — explica Coelho.
Potência ‘benigna’
Na década passada, o então presidente dos EUA Barack Obama iniciou uma das mais impactantes alterações de doutrina de política externa do país, ao mudar o centro das atenções do Oriente Médio para a Ásia e o Pacífico.
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Pequim viu aí a oportunidade para se apresentar como potência “benigna”, que defenderia a neutralidade, não tentaria impor valores (se opondo à “expansão da democracia” de Washington) e se mostraria como uma força de conciliação. Em 2016, o presidente Xi Jinping disse a líderes da Liga Árabe que, através do Cinturão e Rota, criaria uma “rede de parcerias mutuamente benéficas”.
Economicamente, os números mostram que a abordagem foi exitosa. Mas os resultados são escassos em termos políticos — uma exceção foi o acordo firmado em março de 2023 entre Irã e Arábia Saudita, duas potências regionais que estiveram à beira de um conflito e que têm bilionários investimentos chineses. E, ao contrário de Washington, Pequim não demonstra interesse em um caminho militar no Oriente Médio.
— A China tende a evitar a militarização de sua presença no Oriente Médio, preferindo promover a estabilidade através de investimentos econômicos e laços diplomáticos. Embora pareça paradoxal, visto que critica publicamente os EUA como um líder falho e ineficiente, não há indicações claras de que Pequim pretenda tomar o lugar de Washington como líder e responsável pela manutenção da segurança e/ou paz regional no Oriente Médio — disse Coelho.
Santoro, no entanto, questiona até que ponto será possível manter essa postura de neutralidade em um Oriente Médio sujeito a ebulições. Ele cita o próprio exemplo dos EUA, que dizem querer reduzir sua presença na região, mas se veem cada vez mais inseridos na sequência de crises.
— Me pergunto se a China não caminha para esse tipo de cenário também. Vimos várias situações nos últimos seis meses em que a guerra de Gaza dava sinais de que se tornaria regional, entre Irã e Israel, com os EUA — opina. — Acredito que a posição chinesa seria muito similar com a da guerra na Ucrânia, em que a China não envia ajuda militar para a Rússia, mas ajuda Moscou de todas as outras formas.
Interesses em jogo
Um movimento que, para Coelho, poderia ser motivado também pelas próprias necessidades estratégicas chinesas.
— A China pode intensificar seu apoio diplomático ao Irã para assegurar a continuidade de suas importações de petróleo. Embora Teerã seja altamente dependente das importações de petróleo e gás por parte de Pequim, o que poderia fundamentar uma pressão da diplomacia chinesa, entendo que o governo não deve agir nesse sentido — afirma o especialista. — Os ataques iranianos a Israel mostraram que os EUA têm fortes laços com a Arábia Saudita, entre outros países, de forma que, para a China, tornar a dependência econômica iraniana uma arma de pressão contra os interesses de Teerã pode ser perigoso e desastroso para as relações que mantém com o país.
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