Internacional

‘Meu filho tinha poucas horas de vida, e tivemos que nos proteger’, conta nigeriana que deu à luz no dia 1 de guerra na Ucrânia

Rhiga Adeleke, radicada em Kiev, conta como foi parir assim que começou a invasão russa, em 2022, e o périplo para deixar o país rumo à Alemanha

Agência O Globo - 26/05/2024
‘Meu filho tinha poucas horas de vida, e tivemos que nos proteger’, conta nigeriana que deu à luz no dia 1 de guerra na Ucrânia

“Eu estava em casa em 24 de fevereiro de 2022, quando alguém me ligou às 8 horas e disse que ‘o mundo iria acabar e todos nós iríamos morrer’. Na hora, fiquei particularmente confusa porque eu estava grávida e prestes a dar à luz a qualquer momento. Olhei pela janela e vi muitas pessoas correndo pela rua. Me perguntei o que estava acontecendo, comecei a acreditar que a ligação poderia ser real e fiquei muito assustada. Imediatamente, entrei em trabalho de parto. Sem carros circulando pela cidade, só conseguimos um táxi para ir ao hospital por volta das 13 horas. Às 20 horas, meu filho Ivan nasceu. Pouco tempo depois, por volta das 3 horas do dia 25, os bombardeios começaram.

Legitimidade em jogo: Rússia usa 'Presidência-tampão' de Zelensky como arma de propaganda na guerra

'Código 9.2': Como uma unidade do Exército da Ucrânia usa drones para lançar bombas dentro da Rússia

A Rússia estava atacando a Ucrânia. Meu filho tinha poucas horas de vida, e tivemos de correr para o subsolo para nos proteger. Conosco, outras mulheres que estavam prestes a dar à luz. E que tiveram que parir ali mesmo.

Racismo no trem

Olhava em volta e via as pessoas falando russo o tempo todo. Eu não entendia muito bem o que acontecia, não sabia por que estávamos ali, sentia muito medo e implorava para me deixarem ir, me justificava dizendo que não era ucraniana e só queria ir embora de volta para a Nigéria. As bombas só pararam às 9 horas. Foi quando eu e meu marido decidimos ir para casa. Nós morávamos em Kiev havia cerca de um ano e tínhamos nos mudado para a Ucrânia em busca de melhores oportunidades.

O bombardeio continuava todas as noites, das 20 horas até o amanhecer. No terceiro dia, decidi que não poderíamos continuar ali. Não podia deixar meu bebê passar por aquilo. Ele não entendia o que era um bombardeio ou o barulho das bombas, mas eu sabia o que significavam. Naquele momento, nenhuma pessoa que conhecíamos permanecia na Ucrânia, e isso me assustou ainda mais, pois eu senti que estávamos presos ali.

Então, quando ele tinha quatro dias de vida, fomos para a estação de trem. E a experiência foi horrível, pois os ucranianos foram racistas conosco e nos disseram que somente cidadãos ucranianos podiam embarcar. Estava ficando tarde e já era quase o momento de os bombardeios começarem novamente. Ficamos com muito medo do que poderia acontecer. Até que alguém na multidão percebeu que estávamos com um bebê, e nos disseram que podíamos entrar, só eu e meu filho. Fiquei olhando para o meu marido e começaram a nos empurrar. Decidi que precisava me acalmar, pois não sabia para onde estávamos indo. No fim, não sei como, meu marido também conseguiu entrar no trem, e ficamos meio escondidos na lateral do vagão até o dia seguinte, quando desembarcamos em Budapeste, capital da Hungria.

História se espalhou

Naquele momento, muitas pessoas e organizações entraram em contato conosco, porque, por alguma razão que desconheço, nossa história se espalhou. Nós recebemos ajuda de uma mulher que nos recebeu na casa dela mesmo sem nos conhecer. Foi ela quem me ensinou a cuidar do bebê nos primeiros dias, porque eu não tinha nenhuma experiência, já que era meu primeiro filho. Era uma mulher maravilhosa, e mantemos contato até hoje. Ela nos orientou a vir para Berlim e buscar ajuda na Alemanha, que recebia pessoas da Ucrânia. Os húngaros também não costumam ser muito amigáveis com imigrantes. Então nós esperamos Ivan completar duas semanas de vida e aí partimos.

Resposta 'às ameaças do Ocidente': Rússia inicia exercícios com armas nucleares táticas perto da Ucrânia

Ao chegar na Alemanha, compartilhei minha história num grupo do Facebook voltado para mulheres imigrantes em Berlim. Algumas ucranianas me acusaram de mentir e disseram que eu estaria me aproveitando do fato de que estávamos na Ucrânia quando a guerra começou, mas que eu ‘não parecia ucraniana’. Eu respondi que não precisava ‘parecer ucraniana’ para morar lá, e esse post acabou recebendo muita atenção. Graças a isso, recebi a ajuda de muitas mulheres. Algumas trouxeram comida e roupas para mim e para o bebê, porque não tínhamos nada. Eu só tinha a roupa do corpo, e meu bebê também. Outras nos ajudaram com tradução em órgãos públicos alemães e a resolver as questões burocráticas de registro no país.

Na minha primeira visita ao escritório de imigração alemão, me disseram que o documento que tinha não era suficiente para provar a nacionalidade do meu filho. Como nós deixamos o hospital horas depois de ele nascer, não tínhamos a certidão de nascimento dele, apenas um documento do hospital com meu nome, registrando o parto. Mas as autoridades alemãs não aceitavam esse papel como oficial.

Fui então à Embaixada da Ucrânia em Berlim acompanhada de uma ucraniana que iria fazer a tradução para mim. Mas assim que a funcionária da embaixada viu meu passaporte e percebeu que eu era a pessoa a ser atendida, empurrou todos os documentos na bancada e disse “não”. Eles foram muito racistas aqui. Não te ajudam se você não for ucraniano.

Tentei por um tempo resolver a situação, até que em outubro decidi retornar à Hungria e ir até a fronteira com a Ucrânia para tirar a certidão de nascimento do Ivan. Fiquei lá por um mês, até conseguir a certidão e a identidade ucraniana dele e aí retornei a Berlim. Um tempo depois, recebemos o passaporte dele aqui e pude dar entrada no pedido de proteção que a Alemanha oferecia aos cidadãos ucranianos.

Não tentei solicitar a minha cidadania, mesmo tendo direito por ser mãe dele, pois não queria passar por todo aquele julgamento de novo. Não tinha mais forças para isso.

No fim, conseguimos o direito de ficar aqui por três anos. Em março de 2025, teremos de provar que estamos trabalhando ou estudando para continuar no país. Sou formada em Recursos Humanos e fazia um mestrado na Universidade Internacional de Kiev; meu marido, que é engenheiro, trabalhava. Agora estudamos alemão para conseguir bons empregos aqui. É essencial que saibamos falar o idioma para exercer nossas profissões.

Pensei em voltar para a Nigéria em vários momentos ao longo desta jornada. Sempre me perguntava: ‘O que vim fazer aqui?’ Mas, no início, não era possível pegar um avião com meu filho, porque ele não tinha certidão de nascimento. Se eu soubesse que haveria uma guerra e eu estaria no meio dela, com certeza não teria deixado o meu país.

Foi uma longa jornada, e mal tive tempo de me recuperar do parto do meu filho, mas agora as coisas estão um pouco melhores. Quando conseguimos nos restabelecer melhor em Berlim, retomamos a calma. E aí pensamos: ‘Ok, agora estamos aqui, então vamos apenas nos concentrar em conseguir algo melhor para a nossa família.’

Rede de apoio

Começamos então a criar uma nova rede de apoio aqui em Berlim. Fui à embaixada da Nigéria e descobri uma igreja que nigerianos frequentam na cidade. Já visitamos a igreja e nos sentimos confortáveis em saber que há conterrâneos nossos aqui também. Agora temos um segundo filho, o Itai, de 2 meses. A situação financeira não está tão fácil, mas tenho certeza de que tudo vai se acertar e que nós vamos ficar bem.”

*Repórter do GLOBO e bolsista do Internationale Journalisten Programme 2024, em Berlim