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Xenotransplantes: 'Certamente temos avanços', diz geneticista da USP Mayane Zatz, sobre uso de órgãos de porcos

Paciente americano que recebeu primeiro transplante de rim de um porco morreu neste domingo, dois meses após a cirurgia

Agência O Globo - 20/05/2024
Xenotransplantes: 'Certamente temos avanços', diz geneticista da USP Mayane Zatz, sobre uso de órgãos de porcos

A morte do americano Richard Slayman, de 62 anos, dois meses após ter recebido um transplante de rim de um porco gerou dúvidas em relação à durabilidade deste tipo de cirurgia entre espécies diferentes. Ele já havia recebido o rim de outro humano em 2018, mas o órgão mostrou sinais de falha ano passado e ele retomou a diálise.

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Os xenotransplantes — como são chamados os transplantes de uma espécie para outra — são estudados em vários centros de pesquisa ao redor do mundo e o paciente americano foi a primeira pessoa viva — com exceção de pacientes com morte cerebral — a receber um xenotransplante de rim no mundo.

Apesar da fatalidade, Mayane Zatz, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), garante que as pesquisas estão evoluindo de forma positiva e que o fato de Slayman ter vivido por mais dois meses é uma notícia boa.

Em contraponto, a geneticista citou o caso de Louis Washkansky, primeiro paciente a receber um transplante de coração de outro humano no mundo, que morreu apenas 18 dias depois. Hoje em dia, este tipo de cirurgia é bem mais confiável e seguro, apesar de ainda ser um procedimento complicado.

— Certamente temos avanços — declarou Zatz sobre os xenotransplantes.

A própria família de Slayman divulgou um comunicado agradecendo a equipe médica por ter prolongado a vida do paciente. Zatz explica que a Food and Drug Administration (FDA) — que possui responsabilidades parecidas com a Anvisa nos Estados Unidos — só permite que os xenotransplantes sejam feitos em pacientes "bastante debilitados", o que era o caso do americano, que estava em estágio terminal.

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Apesar dos avanços, ainda existem obstáculos para a xenotransplantação.

Ernesto Goulart, professor do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da USP e colega de Zatz nas pesquisas sobre a questão aponta que todos os animais utilizados para o xenotransplante são clonados, com uma técnica semelhante à da ovelha Dolly em 1996. Os cientistas coletam o DNA da célula adulta do animal, que é tratado em laboratório. Este tratamento consiste, principalmente, na edição de genes que possam causar rejeição hiperaguda quando transplantados para humanos.

Quando este DNA é tratado, ele é transferido para o óvulo sem núcleo — ou seja, sem DNA — de uma fêmea doadora. Por fim, este óvulo é implantado no útero de uma outra fêmea, que tem o papel de uma "barriga de aluguel".

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— A técnica de clonagem suína é muito difícil — admite Goulart. Os porcos são, atualmente, os únicos animais utilizados na xenotransplantação. De acordo com o especialista, além de ter uma execução complexa, a clonagem de suínos possui mais burocracia para serem realizadas que as que envolvem bovinos, por exemplo.

Por que porcos?

Segundo Zatz, os estudos em torno dos xenotransplantes são feitos somente com porcos atualmente. De acordo com a professora, os animais são os preferidos para as pesquisas por diversos aspectos, incluindo a gestação rápida e que geralmente resulta em diversos filhotes.

Goulart comenta que os primeiros relatos de xenotransplantação datam do século XVII, quando alguns médicos da época realizavam transfusões de sangue de ovelhas para pessoas.

No século passado, testes foram feitos com primatas. No entanto, todos os experimentos fracassaram por conta da falta de conhecimento sobre os aspectos imunológicos que envolvem o xenotransplante.

— Hoje em dia se tem um conhecimento genético muito maior.

O pesquisador explica que, em termos evolutivos, os primatas são os mais próximos, especialmente os que têm a África como habitat natural. No entanto, ele salienta que esses animas têm um ciclo de vida muito longo e demoram a se tornar adultos, o que vai de desencontro com uma das características citadas por Zatz como vantagens para a utilização de suínos.

Além disso, Goulart destaca que muitos destes animais estão ameaçados de extinção e não são domesticados, como os porcos. Isso não só dificultaria a utilização de primatas para xenotransplantes, como também tornaria o processo ainda mais complicado do ponto de vista ético.

Quando questionada sobre o possível dilema ético de se transplantar órgãos entre espécies diferentes e criar animais somente para este feito, Zatz, que não consome carne, acredita que este pode ser um propósito melhor para os porcos.

— Sou a favor porque é muito mais nobre utilizar os animais para salvar vidas que para comer.

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Alta demanda de transplantes

Para Zatz, a necessidade dos xenotransplantes vem da quantidade significativa de pessoas que precisam de um transplante — o que pode se intensificar com o envelhecimento populacional. De acordo com dados do Ministério de Saúde concedidos ao g1, mais de 65 mil pessoas estão na fila para transplante de órgãos no Brasil. Desses, quase 39 mil esperam um rim.

Segundo Goulart, somente coração e rins estão sendo transplantados, mas afirma que a xenotransplantação não deve se limitar a eles. A priorização do coração se deve à gravidade dos pacientes que necessitam do órgão, enquanto os rins são favorecidos pela alta procura.

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— A gente tem uma demanda muito grande e que vem aumentando nos últimos anos — declara Dayani Galato, farmacêutica, docente da Universidade de Brasília (UnB) e colaboradora na Unidade de Transplante Renal do Hospital Universitário de Brasília.

Ela explica que, além das pessoas que já nascem com a necessidade de transplantes — por doenças autoimunes, por exemplo —, a intensificação de doenças crônicas nos últimos anos resultou em um aumento na lista de espera para um órgão no Brasil.

— A maioria das pessoas precisa de um rim porque não soube cuidar dessas doenças crônicas.

Galato afirma que é a favor do avanço da xenotransplantação, mas entende que existe mais trabalho a ser feito nas pesquisas e experimentos atuais. Em sua visão, o cenário ideal seria ter acesso a um órgão transgênico que o corpo humano aceitasse 100%, a fim de evitar rejeições e o uso contínuo de imunossupressores.

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A pesquisadora esclarece que, apesar destes medicamentos auxiliarem a evitar a rejeição, seu uso pode levar a outras doenças, como a diabetes ou infecções. Para ela, o transplante é "melhor que a diálise", por exemplo, "mas não é o paraíso".

Os órgãos

Zatz explica que o transplante direto entre outros animais e humanos não funciona, pois existem genes nos porcos que causam rejeição hiperaguda. Segundo ela, é preciso editar o DNA do animal para que esta rejeição diminua para níveis normais.

Além disso, os porcos precisam ser criados em ambientes estéreis, a fim de evitar contaminações.

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A USP inaugurou no final do ano passado a primeira pig facility do Brasil — uma espécie de "fazenda" de porcos transgênicos altamente estéril para a produção dos órgãos geneticamente modificados. A capacidade da Unidade é de 10 a 15 animais, a depender da linhagem dos porcos.

De acordo com o Jornal da USP, o biotério, entre outros compartimentos, possui sala de criação, sala de reprodutor, sala de ração, sala de neonatal, centro cirúrgico e até creche.

A pig facility foi idealizada para o projeto Xeno BR, iniciativa voltada para a pesquisa de xenotransplantes.

Goulart, co-fundador de uma start-up homônima e que é uma das partes envolvidas no projeto, conta que a ideia do Xeno BR nasceu há 7 anos, como iniciativa do professor Silvano Raia, doutor pela Faculdade de Medicina da USP, onde também leciona.

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— O xenotransplante é um sonho da medicina muito antigo — declarou Goulart. Ele explicou que, apesar da medicina fantasiar com este tipo de transplante há muito tempo, o progesso nas pesquisas e experimentos só foram possíveis com o avanço das tecnologias, especialmente da genética.

— [Com o advento das novas tecnologias], a gente percebeu que o momento tinha chegado.

Outros casos

Enquanto Richard Slayman foi o primeiro paciente a receber um rim de porco, David Bennett foi pioneiro em receber um coração. O americano de 57 anos sofria de doença cardíaca e faleceu dois meses após o procedimento, de insuficiência cardíaca.

No ano passado, o veterano da Marinha americana Lawrence Faucette de 58 anos foi a segunda pessoa a receber um coração de porco geneticamente modificado. O homem tinha uma doença cardíaca terminal e havia sido rejeitado em todos os programas de transplante com doadores humanos por estar muito doente.

Após a cirurgia ele afirmou que iria "lutar com unhas e dentes por cada respiração que puder dar". Ele sobreviveu por seis semanas, mas faleceu em novembro de 2023.