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Enchentes no RS: 3 psicanalistas falam do grande impacto da tragédia na mente e na vida dos brasileiros

Vera Iaconelli, Christian Dunker e Maria Homem tentam responder às questões dos gaúchos: 'quem é que vai pagar por isso?' e 'como iremos sair dessa?'

Agência O Globo - 19/05/2024
Enchentes no RS: 3 psicanalistas falam do grande impacto da tragédia na mente e na vida dos brasileiros

Nos últimos dias, duas perguntas foram seguidamente dirigidas ao GLOBO por quem vive o maior desastre da história do Rio Grande do Sul: “quem é que vai pagar por isso?” e “como iremos sair dessa?”. A busca por responsabilização, a popularização do termo ansiedade climática e as incertezas sobre a reconstrução do que foi varrido pela força da água eram acompanhadas pelo reconhecimento da mobilização nacional e o agradecimento ao esforço de solidariedade que ajudou a alimentar, aquecer e cuidar mais de 540 mil pessoas desalojadas de suas casas.

Como o poder público e a sociedade civil responderão a essas e outras questões, apontam Vera Iaconelli, Christian Dunker e Maria Homem, será central para os gaúchos enfrentarem o trauma causado pela perda de familiares, de amigos, das casas onde viviam, de boa parte de suas memórias e, em casos como o de Eldorado do Sul, na Grande Porto Alegre, de toda uma cidade submersa pelas águas. Até a tarde de sexta-feira, foram confirmadas 154 mortes e 98 pessoas seguiam desaparecidas no estado.

Com a ponderação da dificuldade de se refletir sobre evento sem prazo científico exato para terminar e que, entre suas casualidades, inclui a ação humana, com o desmonte de políticas ambientais e a falta de manutenção das estruturas de contenção das águas, os psicanalistas refletiram, a pedido do GLOBO, sobre o momento ideal para apontar responsáveis (o governador Eduardo Leite defendeu, em coletiva ao lado do presidente Lula, no último dia 5, que “não é hora de procurar culpados”) e de que modo o esforço de dimensões inéditas de reconstrução do estado pode ser também transformador para a saúde mental dos gaúchos. E para a cabeça de todos os brasileiros.

Vera Iaconelli, mestre e doutora pela USP

“Salvar as pessoas e pensar na responsabilização dos culpados são parte de uma mesma cadeia de ações, não isoladas. Podem e devem acontecer ao mesmo tempo. Na última quinta-feira, um vereador de Caxias do Sul sugeriu cortar árvores para evitar deslizamentos. Segue-se falando sem noção e sem receio de responsabilização.

O reconhecimento da perda é busca fundamental para a vivência do luto, para se seguir sem ficar melancólico, mesmo sabendo que certas perdas são irreparáveis. Jamais se terá de volta o que perdeu, mas pode-se ter a dignidade do reconhecimento de quem causou a perda. Além da solidariedade coletiva, a responsabilidade moral, jurídica e financeira traz alento para as vítimas.

Estamos sob o impacto de tragédia imensa, mas ela também é efeito do que deixamos de fazer, do que deixamos acontecer impunemente. A necessária esperança embutida na solidariedade, na força dos comprometidos em reconstruir suas vidas, suas casas, precisa ser acompanhada por reflexão coletiva sobre as leis que passaram e as que não andaram no Congresso. Sobre o que faremos da Amazônia e do Cerrado.

Responsabilização e punição são temas complexos no Brasil. Se a pessoa faz algo comprovadamente errado, mas pede desculpas, tudo bem. É a lógica do homem que bate na mulher e volta no dia seguinte com flores. O arrependimento basta. Mas precisamos falar do ressarcimento, da penalização por negligência, por ações erradas ou insuficientes, por omissão. Esta foi uma tragédia anunciada, que tirou centenas de vidas, deixou rastro impressionante de destruição, e que poderia ter sido evitada ou diminuída.

Contar e lembrar minimiza a perda material. Fotos, móveis, documentos transmitidos de uma geração a outra. Será importante cultivar a história oral, possibilidade de o luto criar outras memórias. Não se tentar fazer um simulacro do que se perdeu, mas incluir a perda como parte da história de um povo. É diferente de uma casa que pegou fogo e ajudamos a vizinha a se reerguer. Estamos testemunhando um mesmo sofrimento, que precisa ser compartilhado socialmente. Após a ajuda material, as vítimas precisarão de tratamento psíquico e as instituições de psicanálise e psicologia estão se organizando para ajudá-los. Para nos ajudar.”

Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP

“Em ‘Lutos finitos e infinitos’ e ‘Lacan e a democracia’ escrevi sobre culpa, responsabilidade e implicação. A culpa é importante por mobilizar uma reação, se distanciar da apatia. Para a travessia do trauma, é bom que se sinta ódio, é melhor reagir do que ficar apático, com olhar distante, tão impactado pelo horror que não se consegue mais estar presente. E vivemos hoje no Brasil um cenário prolongado de anomia, um estado de ausência de regras que intensifica a sensação de pânico, de abandono.

A busca do culpado evita a dissociação do real. Ele pode ser um político, a natureza, Deus, é escolhido de acordo com a complexidade social de cada um. Mas a mobilização do ódio é faca de dois gumes, pois joga a responsabilidade para o outro, aquele que não protegeu você, o empodera.

É preciso então pensar em responsabilização e implicação. Na ideia de que um pacto foi quebrado, e que podemos reconstruí-lo. Não apenas punir de modo subjetivo, mas nos encarar e pensar com coragem sobre qual foi minha parte nesse latifúndio. Pressionei o político? Votei certo? Achei que colapso ambiental era uma falácia? Li ou espalhei fake news sobre o clima? Dei de ombros ao reerguer minha casa em local precário demais?

Cada um de nós, refugiados ambientais planetários, precisaremos fazer esta análise para estabelecer um novo pacto de vivência. Uma parte do que aconteceu no Rio Grande cabe à natureza, mas outra cabe a nós todos. Se não chegarmos a esse segundo tempo, o trauma tende a se estabelecer mais facilmente.

Responsabilidade traz questões que a culpa não contém: o que se fará agora? Como será essa nova cidade? Urbanistas, antropólogos, sociólogos, psicólogos, gestores pensando juntos para que erros não se repitam. Pagar às vítimas o valor que a apólice de seguros determina é, aqui, insuficiente e estreito. Precisamos ter a coragem de ir além dos limites do Direito estabelecido. E a palavra-chave para isso é implicação. Cuidarmos juntos de uma experiência que ainda não aconteceu mas que pode ser exemplar, se comprometer de fato com um futuro comum. A identificação do culpado é importante, mas não transformadora. Precisamos ir além.”

Maria Homem, psicanalista e professora

“Fenômenos complexos têm casualidades complexas, não podemos encarar essa tragédia com simplismo. A busca da culpa não termina na natureza ou em uma única administração, em um só presidente, um governador, um prefeito, na esquerda, na direita, mas em um conjunto de ações igualmente complexo. Claro, há os responsáveis pela macropolítica, mas por nós eleitos. Passar por este trauma e seguir adiante incluirá parar de nos infantilizar. Ter a consciência das ações que realizamos.

Vivenciamos agora um movimento de muita dor, de perda, e singular ao se perceber ao mesmo tempo impotente e responsável diante da catástrofe. Por mais paradoxal que seja, precisamos reconhecer que somos ambas as coisas. O trauma será trabalhado ao ampliarmos a consciência sobre nossos lugares, limites e responsabilidades. Precisaremos ao mesmo tempo transformar nossas ações, insuficientes, e pressionar os outros. Essa pode ser uma oportunidade transformadora. Aquele momento em que você está educando um filho, e ele pode sofrer, espernear, mas só comerá o que gosta se abandonar a chupeta.

Vive-se situação sem volta. Precisamos encarar que chegamos a um ponto sem saída. Que estamos no mesmo barco. Que a lógica tribal não serve, provou-se incapaz neste momento.

O único aspecto positivo desse horror foi que agimos juntos, num esforço impressionante de solidariedade. E a saída está nele. Precisamos agora trabalhar duro, criar uma rede de amparo real, potencializar esse movimento, sair da polarização bem X mal, nos comprometer com a mudança. Ou seja, implicação sem descartar a busca dos culpados e no que isso significa para a nossa memória. Para que tudo não acabe em algum tipo de anistia, mas em transformação verdadeira.