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Fuga de criminoso em emboscada revela batalha da França contra multimilionário tráfico de drogas

Assassinato de dois agentes penitenciários e a fuga de um criminoso chamou atenção para Marselha, que registrou, em 2023, 49 mortes e 123 feridos em tiroteios relacionados a gangues rivais

Agência O Globo - 19/05/2024
Fuga de criminoso em emboscada revela batalha da França contra multimilionário tráfico de drogas

Se a França é um país de ilusões — uma terra bela e sedutora que oferece muitos dos maiores prazeres da vida, mas que esconde um mundo de violência dominado pelo crime e está tomada pelas drogas —, a semana passada ofereceu um duro despertar para esta dupla realidade.

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A chama olímpica chegou ao solo francês na antiga cidade portuária de Marselha, enquanto uma multidão alegre lotava o belo porto. O clima era de paz antes dos Jogos, que começam em julho. Mas a chama também chegou a uma cidade cujos bairros do norte são o epicentro do tráfico de drogas francês, e onde 49 pessoas foram mortas e 123 ficaram feridas apenas no ano passado.

O assassinato a sangue frio, na última terça-feira, de dois guardas prisionais numa emboscada que libertou Mohamed Amra — conhecido como “A Mosca” e que está sendo investigado em Marselha por possíveis ligações a um caso de homicídio relacionado com drogas —, abalou a França. A execução metódica, em plena luz do dia, na estrada principal que liga Paris à Normandia, aconteceu a apenas 135 quilômetros da capital, Paris. Os métodos eram compatíveis com a brutalidade de um mercado de drogas em expansão.

Aumento de 180%

O senador Jérôme Durain, membro do Partido Socialista e um dos dois autores de um relatório do Senado que avalia o impacto do tráfico de drogas no país, concluído na semana passada, não ficou chocado com o assassinato.

— O mundo que encontramos é de violência ilimitada envolvendo pessoas, muitas vezes muito jovens, que não têm consciência e perderam todo o sentido do valor da vida — disse, em entrevista. — A corrupção começou a se espalhar porque há muito dinheiro em jogo.

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Bruno Le Maire, o ministro das Finanças francês, afirmou, em março, que o comércio de drogas na França movimenta atualmente cerca de US$ 3,8 bilhões por ano (R$ 19,4 bilhões), mas outras estimativas chegam a US$ 6,5 bilhões (R$ 33,2 bilhões). O volume de ecstasy e anfetaminas apreendidos pelas autoridades aumentou 180% em 2023, de acordo com o serviço alfandegário francês.

No total, foram apreendidas quase 93 toneladas de drogas no ano passado, no valor de US$ 927 milhões (R$ 4,73 bilhões), de acordo com um relatório anual do governo. A cannabis, que é ilegal no país, é a droga mais apreendida, seguida pela cocaína, segundo o documento apresentado no Senado na semana passada.

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Amra já era figura conhecida na Justiça francesa: ao todo, ele acumula 13 condenações. A última foi em 7 de maio, quando o tribunal de Évreux o sentenciou a 18 meses por “roubo com arrombamento”. Ele estava em prisão preventiva por outros casos — incluindo cumplicidade em assassinato, organização criminosa e sequestro — e voltava para a prisão de Évreux após comparecer ao tribunal de Rouen, uma viagem de cerca de 60 quilômetros, quando o veículo em que estava foi atacado. Amra fugiu, e seus cúmplices também escaparam.

À medida que a caça a ele continua, a Organização Internacional de Polícia Criminal (Interpol) emitiu um aviso vermelho — na verdade, um pedido urgente de ajuda do governo francês para encontrar o fugitivo, que poderia ter atravessado uma das fronteiras do país.

Embora não existam, até agora, provas concretas de que a extraordinária sofisticação da emboscada comprove o seu possível status de traficante de drogas, o ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, foi enfático sobre a ligação entre o suspeito e o crime organizado, em depoimento ao Senado.

— Senador Durain, o senhor é prudente quanto à ligação entre este ataque ignóbil e o tráfico de narcóticos. Não tenho essa prudência. Existe uma conexão, é evidente — disse Darmanin, acrescentando que “o maior perigo para a nossa unidade nacional é o tráfico de drogas”. — Exorto o país fazer 100 vezes mais do que fizemos até agora.

O ministro também descreveu o relatório sobre as drogas no país, elaborado por Durain em conjunto com o senador Étienne Blanc, do Republicanos, de centro-direita, como absolutamente correto.

— Todos devemos acordar. Devemos combater as drogas, que nunca são festivas, são sempre mortais — afirmou. — Ninguém no futuro deveria apresentar um único argumento aceitando seu consumo.

Foi um apelo extraordinário à ação. Na entrevista, Durain alertou ainda que a França se uniu para combater de forma eficaz o terrorismo, mas nunca o fez para combater o tráfico de drogas, que, segundo ele, “ceifa muito mais vidas”.

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Em Marselha, cidade visitada pelo presidente Emmanuel Macron com grande alarde, em março, para anunciar um ataque ao que chamou de “terrível flagelo” do tráfico de drogas, a situação continua piorando, segundo o ministro.

— Quando se trata de uma batalha total entre gangues e de uma competição violenta por pontos de venda, Marselha lidera o restante do país, mesmo que o domínio traiçoeiro das drogas esteja se espalhando para cidades menores da França — alertou Durain.

Disputa entre grupos

A operação do governo, que se estendeu a várias cidades francesas, é chamada de “Varredura Limpa”. Mas, segundo o ministro, teve um impacto mínimo.

Pascal Bonnet, vice-chefe de investigações criminais e responsável pela região sul da França, disse ao jornal Le Monde que a polícia identificou as duas principais gangues rivais em Marselha, conhecidas como Yoda e DZ Mafia. A feroz disputa entre elas para controlar os pontos de venda causou, apenas no ano passado, cerca de 35 dos 49 assassinatos registrados na cidade.

Em bairros no norte de Maselha e em outros mais pobres em todo o país — especialmente onde os imigrantes norte-africanos têm dificuldade para se integrar à sociedade francesa —, as taxas de abandono escolar são elevadas, a violência é comum e o acesso a emprego é escasso. Ofertas através de grupos no WhatsApp e outras redes sociais de ganhos de até US$ 5.500 (R$ 28 mil) para dirigir um carro ou até US$ 200 mil (cerca de R$ 1 milhão) por um assassinato podem ser irresistíveis.

— Há serviços de entrega em domicílio em Marselha para maconha ou cocaína que são vendidos nas redes sociais como um negócio comum — disse o senador Durain. — Pessoas em grupos privados no WhatsApp os chamam de “Uber-hash” ou “Uber-coke” [em referência ao haxixe e a cocaína].

Vários ministros prometeram recapturar Amra e levar à Justiça os assassinos que o libertaram, mas quanto mais a busca prossegue, mais embaraçoso fica o cenário para Macron, em um momento delicado com a aproximação dos Jogos Olímpicos. Em um nível mais profundo, a fuga, no mesmo dia da publicação do relatório do Senado, parece ter aberto um vigoroso debate sobre a razão pela qual as tentativas do governo para resolver o problema das drogas se revelaram, pelo menos até agora, tão ineficazes.