Internacional
‘No Ocidente, Europa e EUA não representam a mesma coisa, isso é um mito’, defende analista-chefe de centro europeu
Para Pawel Zerka, Brasil ocupa posição geopolítica estratégica, mas política externa baseada na neutralidade está com os dias contados

O Brasil ocupa hoje uma posição estratégica no cenário internacional ao manter boas relações com o Ocidente e se posicionar como uma liderança do Sul Global. Mas sua política externa “a la carte”, baseada na neutralidade, talvez esteja com os dias contados. É o que avalia Pawel Zerka, analista-chefe de opinião pública do Conselho Europeu de Relações Exteriores, um laboratório de ideias sediado em Berlim. Na visão do especialista, Brasil e Europa têm mais em comum do que costumam admitir os seus líderes: em um cenário de mudanças da ordem global, ambos se veem pressionados pelos Estados Unidos a escolher um lado nas disputas geopolíticas, especialmente com a China. Polonês de origem, ele veio recentemente ao Rio para participar do debate “Em busca da interdependência estratégica: O que o Brasil pensa?”, promovido pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
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Uma das agendas prioritárias do Brasil à frente do G20 é a reforma da governança global. Qual a importância desta agenda?
É uma agenda muito difícil, mas necessária. Vivemos em um momento em que a ordem global está claramente mudando e isso ocorre principalmente porque há muitos países cujo peso econômico e político está crescendo, enquanto a Europa continua se beneficiando de uma posição bastante privilegiada nos órgãos políticos multilaterais. As instituições globais, como os diferentes órgãos das Nações Unidas, não refletem a mudança da ordem global em sua estrutura. Se julgarmos pelo poder econômico e político dos diferentes atores, não há razão lógica para explicar por que um país como o Brasil ou o Japão, a Índia ou a Alemanha não deveria estar no Conselho de Segurança, por exemplo.
Há espaço para uma reforma concreta?
Essas instituições datam de meados do século XX, e como é muito difícil modificá-las e muito assustador ficar sem elas, mantemos o que existe. Mas nos últimos dois anos [desde o início da guerra na Ucrânia], quando a Europa e os EUA tiveram que se aproximar de países do mundo todo, pedindo que aderissem às políticas ocidentais em vários aspectos, eles ouviram desses países que não deveriam esperar que fossem simplesmente seguir o Ocidente, sem mais nem menos. Esse momento foi, em grande parte, um abrir de olhos para muitos na Europa e nos EUA que antes talvez não pensassem na necessidade de reformar a ordem global. Hoje isso já é aceito de fato como uma necessidade, mas é apenas um primeiro passo. O processo de reforma em si é muito mais difícil. Há um longo caminho pela frente.
E qual é a posição do Brasil neste processo?
O Brasil está muito bem posicionado nesse sentido, porque é um país que, de certa forma, faz e pode fazer parte do Ocidente, se for conveniente, mas também faz parte do Sul Global, que é como os europeus costumam chamar os países que estão emergindo e que não estão adequadamente representados na atual ordem global. Portanto, graças a essa dupla identidade, o Brasil está muito bem posicionado. Ele é visto como confiável pelos países do Sul Global, mas também tem boas relações com a Europa e os EUA. Isso faz com que possa ser uma espécie de construtor de pontes nesses debates difíceis no G20, que, em meio à crise econômica global, se provou um fórum crucial em diversos aspectos.
Essa dualidade do Brasil é uma oportunidade para o país no cenário global?
É uma grande oportunidade, mas a questão é como o país aproveita isso. Quando Lula voltou ao poder, isso foi visto como algo muito promissor pela maioria dos governos da Europa. A percepção era de que, finalmente, o Brasil teria um líder com forte senso de responsabilidade e ambições importantes para o seu país, um líder que buscaria impulsionar o Brasil de volta ao cenário mundial com foco nas mudanças climáticas e na democracia. Mas as guerras na Ucrânia e em Gaza provaram que, na prática, é realmente difícil estar em um papel duplo. O cenário atual não permite mais que sejamos amigos de um lado e de outro, é preciso fazer escolhas.
A política externa brasileira precisa de ajustes?
O Brasil é um desses lugares que costumam ser o que nós chamamos de “economia a la carte”, que podem escolher diferentes parceiros para diferentes relações. A China, por exemplo, é um importante parceiro econômico para o Brasil, enquanto os EUA são importantes na área de segurança. E, por um tempo, essa abordagem funcionou. Mas desde as guerras na Ucrânia e, mais especificamente, em Gaza está cada vez mais difícil encontrar uma linha tênue para que um país como o Brasil não seja visto como tomando um rumo errado. A questão central é: Lula não encontrou ainda a maneira certa de responder a esses desafios ou será que, independentemente do que ele faça, estamos simplesmente entrando em um mundo em que é cada vez menor possível ser neutro?
E de que modo isso interfere nas relações Brasil-UE?
Os europeus, ao contrário dos EUA, não são tão dogmáticos em termos de forçar o Brasil e outros parceiros do Sul Global a escolher um lado. De certa forma, estamos em uma posição semelhante à do Brasil, porque são os americanos que estão tentando forçar os europeus a escolher um lado. A Europa também considera a China como um caminho econômico crucial, e é muito difícil para a Europa aceitar isso, que deveríamos limitar enormemente nossas relações econômicas com Pequim, porque os americanos consideram isso uma prioridade estratégica. Um equívoco que vejo cometerem no Brasil é usarem com frequência a noção de Ocidente, ou seja, de EUA e Europa, como se ambos tivessem o mesmo significado. Esse é um grande mito que precisa ser desmascarado.
Que lugar o Brasil pode ocupar neste novo sistema global?
O Brasil é claramente uma grande potência regional e global, tanto econômica quanto politicamente, por isso é muito importante que seja uma democracia estável. Entendo que há diferenças linguísticas e econômicas na região, com a maioria dos vizinhos brasileiros localizados no Pacífico e ao norte do Atlântico, além do isolamento causado pela Amazônia e pelo imenso litoral, que faz com que, ao contrário da Europa, onde todos os países estão intimamente ligados, haja barreiras territoriais maiores no Brasil — e é por isso que, muitas vezes, os europeus presumem que o Brasil poderia desempenhar um papel de liderança regional muito maior do que realmente deseja ou é capaz de fazer. Mas, ainda assim, essa é a perspectiva do Brasil, não apenas como um país grande e importante, mas capaz de liderar toda a região e não apenas falar por si mesmo.
Qual a importância do Brasil para a Europa hoje?
Há indicadores que mostram que a Europa não dá atenção suficiente ao Brasil e a outros parceiros latino-americanos, como o fato de que o acordo UE-Mercosul ainda não foi aprovado pelo lado europeu e que, de certa forma, foi sequestrado por grupos de interesse, como se a Europa não pudesse reconhecer a importância estratégica deste acordo. Por outro lado, estão claramente cada vez mais interessados no Brasil. Basta ver que, recentemente, tivemos duas visitas importantes, a do chanceler da Alemanha [Olaf Scholz] no ano passado e a de Emmanuel Macron [presidente francês], este ano. E esse interesse se baseia no reconhecimento de que o mundo está mudando e que a Europa precisa fortalecer seus vínculos com parceiros que parecem estar ansiosos para trabalhar conosco nos principais desafios atuais, o que inclui a governança global, mas também a mudança climática ou a transição digital. Acho que é importante para os europeus poderem mostrar ao Brasil que podemos ser seus parceiros na busca por essa reforma da governança global, ao contrário dos americanos, que estão impedindo essa discussão porque não têm interesse em nenhum tipo de mudança.
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