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Senna 30 anos: Como idolatria a piloto foi construída e a marca é mantida após três décadas

Tricampeão mundial atingiu unanimidade nacional que nunca foi igualada por outro atleta brasileiro

Agência O Globo - 01/05/2024
Senna 30 anos: Como idolatria a piloto foi construída e a marca é mantida após três décadas
Senna 30 anos: Como idolatria a piloto foi construída e a marca é mantida após três décadas - Foto: Reprodução Twitter/Formula 1 Esportes

A imagem de um helicóptero nas cores verde e amarela sobrevoando o circuito de Adelaide, no Grande Prêmio da Austrália, em março deste ano, e a expectativa pela projeção do icônico capacete na futurista Sphere, em Las Vegas, nos dão uma certeza: o tricampeão mundial de Fórmula 1 Ayrton Senna continua vivo após 30 anos do acidente fatal em Ímola.

A morte trágica de um dos maiores ídolos do esporte brasileiro há três décadas não foi capaz de arranhar a idolatria do piloto. Pelo contrário, aquele 1º de maio de 1994 se tornou uma efeméride cercada de homenagens a cada ano, numa demonstração clara de que ídolos transcendem o tempo.

No caso de Senna, ele transcendeu o Ayrton e se tornou uma marca, que foi muito bem trabalhada desde o início da carreira do piloto até os dias atuais por meio de seu Instituto e da Senna Brands, que cuida das marcas Senna e Senninha. Toda uma geração que nunca o viu nas pistas tem acesso a memorabilias, livros, filmes, produtos licenciados, etc.

— Através de colaborações, a Senna Brands, criou uma série de produtos de vestuário, tênis de corrida e peças infantis, mas, para além disso, também disponibilizou acervos pessoais, divulgou fotos exclusivas, promoveu encontros, exposições, e todo um conjunto de experiências que manteve esse legado vivo ao longo desses 30 anos. Foi um trabalho duro e colaborativo, em que muitas pessoas precisaram ressignificar esse momento para que ele continuasse existindo em seus corações — explica a sobrinha do piloto, Bianca Senna, CEO da Senna Brands, ressaltando.

— O legado de Ayrton é transmitido de maneira muito familiar, de avô para pai, de mãe para filha, de tio para sobrinho, assim por diante. É uma história de tanto afeto que transcende gerações, porque mesmo quem não presenciou o Senna vivo tem a lembrança da felicidade de quem compartilhou essa história. Além disso, o piloto Ayrton Senna continua sendo uma referência e um ícone para todos os torcedores de Fórmula 1. Mesmo depois de 30 anos, ele continua sendo um precursor de técnicas, recordes e vitórias, tornando-se um competidor difícil de ser substituído.

Bandeira como marca registrada

Para se ter dimensão do quão vivo Senna ainda está, seu nome gerou mais de mil buscas por mês no Google no último ano, segundo levantamento do site SDA. A pesquisa pelo piloto veio de 52 países diferentes, de todos os continentes, com destaque para Brasil, Itália, Estados Unidos, França e Alemanha.

—São muitos fatores que o mantém presente. Suas conquistas notáveis para a época e seu estilo de pilotagem único; uma personalidade cativante e carismática; a relação do Ayrton com causas sociais e filantrópicas também contribui para manter sua memória viva (muitas destas só ficaram públicas depois da morte dele); e, por último, os documentários, filmes e livros continuam a ser produzidos, mantendo sua história viva, inclusive para as novas gerações — diz o empresário Geraldo Rodrigues, que gerenciou a carreira de vários pilotos brasileiros, entre eles Rubens Barrichello.

Mas o que exatamente fez Senna virar um ídolo nacional beirando a unanimidade nunca mais atingida. O contexto histórico é fundamental para entender como um piloto de Fórmula 1, esporte elitista praticado por poucos, se tornou paixão no país do futebol, que, naquele momento, amargava muitas derrotas.

É senso comum que o momento do Brasil nos anos 1980 clamava por um ídolo. O país iniciava a redemocratização após o longo período da Ditadura Militar, e pairava um ar de orgulho nacional e otimismo pelo futuro. A seleção brasileira não seguia esse rumo, com a traumática eliminação na Copa do Mundo da Espanha, em 1982, por exemplo.

—Ayrton tinha uma estrutura ao redor diferenciada para a época, e o pai, Sr. Milton, era o “cérebro” da equipe, além de Botelho (o empresário Armando Botelho), que tinha uma posição fundamental na estrutura… Ayrton visitava todas as redações pessoalmente, coisa que lhe dava uma proximidade grande com os veículos de imprensa. Sua morte prematura chocou o mundo e solidificou sua posição como uma lenda do esporte. O legado de Senna continuou a crescer após sua morte… acho que isso fez crescer ainda mais a admiração por ele — afirma Geraldo.

Senna conseguiu aliar seu carisma nato à construção de identidade nacional que caiu como uma luva para o período. É emblemático que a marca registrada da carreira do piloto tenha relação direção com o futebol. No dia seguinte à eliminação do Brasil para a França, na Copa do Mundo do México, em 1986, o brasileiro venceu o GP dos EUA, em Detroit, e, pela primeira vez, comemorou a vitória empunhando a bandeira do país de dentro do carro da Lotus. Foi uma forma de provocar os franceses, mas que ficou para a eternidade.

Um 'título' a cada domingo

O esporte também contribuiu para a construção da lenda. A Fórmula 1 já era uma modalidade popular entre os brasileiros desde a década anterior. Emerson Fittipaldi e Nelson Piquet foram campeões mundiais antes de Senna. Transmitidas em rede nacional, as corridas eram um campeonato em si. No período entre a conquista dos três títulos, foi possível comemorar 27 vitórias do brasileiro e tantas outras disputas pro posição. Pódios constantes com a imagem do Brasil no topo.

E, de quebra, explica em parte a dificuldade de outro atleta brasileiro chegar próximo de tamanha idolatria. As particularidades dos outros esportes impedem essa relação quase familiar com o ídolo presente na TV de casa todos os domingos celebrando uma vitória nacional.

— Daqui a 300 anos continuarão a falar de Ayrton Senna, pois a marca que ele deixou em todas as pessoas foi muito forte — afirma o piloto Cacá Bueno, da Stock Car. — Acho difícil alguém atingir esse patamar… O brasileiro via nele o Brasil que dava certo. E ele soube dividir suas conquistas com todo povo brasileiro, fazia questão de levantar a bandeira nas vitórias, foi o primeiro piloto a fazer disso um gesto constante. E numa época em que a F1 tinha tanto alcance nos lares brasileiros, ele se tornou um grande ídolo, um herói como acredito que nunca terá o mesmo patamar alcançado nos dias de hoje.

A era das redes sociais, na qual a efemeridade prepondera, é outro ponto que joga contra uma idolatria nacional. Se há um lugar onde a unanimidade não se cria é no ambiente virtual. Manter a aura intocada de um ídolo diante do escrutínio das redes é tarefa impossível nos dias atuais.

—Senna foi um vencedor brasileiro em época de inflação galopante, transição democrática e ausência de títulos mundiais de futebol. Era a imagem do vencedor nacional e nos deixou de forma trágica, buscando ser o melhor. Como ele foi nosso último campeão na Fórmula 1, um esporte que ainda é muito acompanhado por aqui, ainda vivemos uma espécie de "sebastianismo" nesse aspecto: parece que Senna nunca nos deixou porque ninguém o superou ainda — analisa Reginaldo Diniz, CEO e sócio-fundador da End to End.