Internacional

Análise: Fala de líder português sobre reparação histórica é marco simbólico, mas faltam medidas concretas, dizem críticos

Marcelo Rebelo de Sousa admitiu, pela 1ª vez, que país tenha que pagar por crimes cometidos no período colonial, incluindo escravidão e saque de bens dos povos colonizados

Agência O Globo - 25/04/2024
Análise: Fala de líder português sobre reparação histórica é marco simbólico, mas faltam medidas concretas, dizem críticos

O presidente Marcelo Rebelo de Sousa admitiu, pela primeira vez, que Portugal tenha que pagar reparações pelos crimes cometidos no período colonial, incluindo a escravidão e o saque de bens dos povos colonizados. O chefe de Estado disse que o país “assume total responsabilidade” pelos erros do passado durante a comemoração do 25 de Abril, quando o país celebrou os 50 anos da Revolução dos Cravos, que pôs fim a quatro décadas de ditadura salazarista.

Revolução dos Cravos, 50 anos: De país pobre e atrasado, Portugal se tornou referência, revelam dados inéditos

Portugal Giro: Presidente cobra do governo regularização de brasileiros

No ano passado, na mesma data, ele já havia ensaiado um pedido de desculpas no Parlamento, mas não chegou a concretizá-lo. Avançou mais um pouco agora ao falar de reparações, mas especialistas ouvidos por O GLOBO cobram medidas práticas e menos declarações.

— Temos que pagar os custos (pela escravidão). Há ações que não foram punidas e os responsáveis não foram presos? Há bens que foram saqueados e não foram devolvidos? Vamos ver como podemos reparar isso — disse Sousa em um jantar oferecido por ele aos jornalistas estrangeiros em Lisboa, na noite de terça-feira.

Para Ana Paula Costa, pesquisadora do Instituto Português de Relações Internacionais e vice-presidente da Casa do Brasil de Lisboa, o discurso vale como marco simbólico. Mas ela lamenta a oportunidade que Sousa perdeu de provocar mais o governo da Aliança Democrática, de centro-direita, apresentando uma sugestão, mesmo informal, de medida, que algum partido de oposição ou o governo pudessem transformar em projeto para ir à votação no Parlamento.

— O lado simbólico é ok, foi importante marcar no discurso. Mas ainda não conseguimos progredir para uma medida concreta. O lado prático deixa muito a desejar e não avançamos nada sem projeto efetivo. O presidente poderia ter provocado mais o governo com algo pronto que não fosse só discurso. Quero acreditar que se abra caminho, mas acho que não será neste governo minoritário e de direita. Ainda mais com 50 deputados de ultradireita no Parlamento. Mas continuamos tentando — disse Costa.

Doutor em antropologia, professor da Universidade Howard, em Washington, e autor do livro “Human nature and delusions” (Natureza humana e ilusões, sem tradução no Brasil), sobre colonialismo, racismo e eugenia, o português Rui Diogo defende que o colonialismo europeu matou, ao longo dos séculos, mais que o Holocausto. E lamenta que não tenha sido o governo a fazer as declarações, uma vez que o presidente tem apenas poderes limitados.

— Marcelo Rebelo de Sousa está sendo mais direto agora. Mas se fosse o governo a falar, teria uma obrigação quase legal de fazer algo. Ao admitir, Portugal teria mesmo que pagar algo de volta — argumenta Diogo.

O antropólogo até observa o discurso do chefe de Estado português como uma tentativa de atrair atenção para o tema, mas de maneira vaga e que esbarra na persistência que parte da sociedade tem para interpretar de maneira positiva o colonialismo e a Era dos Descobrimentos.

— O presidente não tem poder institucional de fazer o que for. E não parece que o Partido Social Democrata (líder da AD) fará alguma coisa, porque é o contrário do que pensam — explicou Diogo.

Ataque: 'vergonha'

Em uma publicação na rede social X (antigo Twitter), o partido de extrema direita Chega classificou a declaração do chefe de Estado como “vergonha”, afirmando que “se houvesse uma forma de destituir o presidente da República neste momento”, o partido faria. O Chega ganhou força nos últimos anos com um forte discurso anti-imigração e falas xenofóbicas recorrentes. Na última eleição, conquistou 50 cadeiras no Parlamento, consolidando-se como a terceira força da política nacional.

Após 95% de aprovação: governo de Portugal avalia semana de quatro dias de trabalho

Organizadora da coletânea de textos “Volta para a tua terra”, a pesquisadora e escritora Manuella Bezerra de Melo acredita que a declaração de Sousa aconteceu em boa hora. Mas cobra compromissos.

— Iniciativa urgente é mudar os livros escolares para outros que contem a verdade sobre a colonização, porque as crianças aprendem que os portugueses levaram a civilização para o mundo e que foram os bons colonizadores, o que é mentira. Também é necessário devolver os pertences históricos dos povos que foram roubados. Por fim, é urgente aprovar políticas públicas de reparação também para os imigrantes de ex-colônias que vieram viver em Portugal porque tiveram seus países devastados pela ação colonialista — disse Melo.

Portugal começou a debater a reparação de maneira mais objetiva no fim de 2022, quando o então governo do Partido Socialista (PS) prometeu fazer um inventário organizado por um conjunto especialistas, que deveriam listar os bens culturais, obras de arte, objetos de culto e restos mortais em poder do país para começar a devolvê-los ao Brasil e a ex-colônias africanas. Questionado ontem pelo GLOBO, o Ministério da Cultura, responsável pela medida, não respondeu.

'Desculpa devida'

Meses depois, no Parlamento durante a celebração do 25 de Abril em 2023, e na presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Sousa faria o primeiro discurso sobre a responsabilização e desculpa pelo passado colonialista de Portugal:

— Não é apenas pedir desculpa, devida, sem dúvida, por aquilo que fizemos, porque pedir desculpa é às vezes o que há de mais fácil, pede-se desculpa, vira-se as costas, e está cumprida a função. Não, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado

Na última terça-feira, voltou a falar em pedir perdão, mas sem pedir de maneira oficial, porque, segundo ele disse novamente, “pedir desculpas é a parte mais fácil”.

Durante a fase colonial, cerca de 5,8 milhões de escravizados foram traficados por Portugal, quase metade dos 12,5 milhões sequestrados e levados da África por colonizadores europeus.