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Academia Brasileira de Letras do Cárcere é inaugurada no Rio; relembre clássicos escritos atrás das grades

Graciliano Ramos, Oscar Wilde e o Marques de Sabe estão entre os autores que conceberam obras-primas na cadeia

Agência O Globo - 19/04/2024
Academia Brasileira de Letras do Cárcere é inaugurada no Rio; relembre clássicos escritos atrás das grades

Conforme noticiou o blog True Crime, do GLOBO, Marcinho VP, apontado como um dos principais chefes do Comando Vermelho (CV), maior facção do Rio, foi empossado nesta quinta-feira (18) na Academia Brasileira de Letras do Cárcere (ABLC). Márcio dos Santos Nepomuceno está preso há 37 anos e já escreveu três livros na cadeia: “Preso de guerra”, “Execução banal comentada” e “Marcinho: verdades e posições”. Na ABLC, Marcinho VP ocupa uma cadeira batizada em homenagem a Graciliano Ramos, autor de “Memórias do Cárcere”.

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Publicadas em 1953, após a morte do autor, as “Memórias do cárcere” foram redigidas entre 1936 e 1937, período que Graciliano passou preso, acusado de comunismo pela ditadura de Getúlio Vargas. No livro, ele descreve as condições precárias da cadeia (a imundície do local lhe causava náuseas) e os tipos que encontrou por lá. Também comenta acontecimentos da época, como a deportação da judia comunista Olga Benário, entregue pelo Estado Novo a Adolf Hitler. E recorda sua trajetória anterior à prisão, da escrita do romance “Angústia” a sua experiência como gestor público em Alagoas.

Graciliano e Marcinho VP não estão sozinhos. Não foram poucos os escritores que conceberam obras-primas na cadeia. Confira alguns exemplos abaixo:

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“Justine”, do Marquês de Sade

Sade escreveu um dos maiores clássicos da literatura erótica durante duas semanas que passou preso na Bastilha em 1787. O autor passou boa parte da vida na cadeia por crimes sexuais, blasfêmia e pornografia. A narradora de “Justine” é Madame de Lorsagne, uma condenada à morte que tenta se defender e recorda a série de infortúnios que a levaram à prisão. O filósofo francês Michel Foucault observou que “Justine” está para a modernidade assim como “Dom Quixote” está para o barroco.

“De Profundis”, de Oscar Wilde

Condenado a trabalhos forçados por “comportamento indecente e sodomia”, o irlandês escreveu, na prisão, uma longa carta cheia de inquietações a seu amante, Alfred Douglas. Wilde não foi autorizado a enviar a missiva a Douglas, mas pôde levar o manuscrito consigo quando foi posto em liberdade. Após a morte do autor, em 1905, o jornalista Robert Ross, amigo dele, publicou uma versão reduzida da carta. Uma versão mais fiel à original foi editada, em 1949, por Vyvyan Holland, filho de Wilde. Em 1962, veio a lume outra versão, cotejada com a manuscrito original.

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“Nossa Senhora das Flores”, de Jean Genet

Preso diversas vezes por roubo, vagabundagem e outras ofensas, o francês Jean Genet escreveu “Nossa Senhora das Flores” no cárcere. Inspirado na vida do autor, o romance é povoado por personagens LGBT que vivem às margens da sociedade e começa recordando a travesti Divine. O narrador afirma que está contando a história para se distrair enquanto cumpre sua pena. Cheio de cenas de sexo, o romance foi chamado pelo filósofo Jean-Paul Sartre de “épico da masturbação”.

“Cadernos do cárcere”, de Antonio Gramsci

Entre 1926 e 1937, período em que esteve preso por resistir ao regime fascista, o intelectual comunista italiano Antonio Gramsci completou 29 cadernos que, uma vez editados, tornaram-se uma das obras mais influentes do marxismo. Publicados postumamente em seis volumes, os cadernos de Gramsci abordam temas diversos, como o pensamento do influente filósofo italiano Benedetto Croce, a questão dos intelectuais (foi ele quem cunhou o termo “intelectual orgânico”), a filosofia política de Nicolau Maquiavel e a história de seu país.

“Em câmera lenta”, de Renato Tapajós

O único romance do cineasta Renato Tapajós foi escrito atrás das grades. Membro da esquerda que pegou em armas contra a ditadura militar, ele foi preso em 1969. Na cadeia, decidiu fazer uma espécie de autocrítica por meio da literatura. O resultado foi “Em câmara lenta”, romance melancólico e fragmentário, que acompanha dois grupos de guerrilheiros, um urbano, acossado pela repressão, e outro metido na selva amazônica. Tapajós escrevia em papel de seda com uma letra minúscula. Dobrava as folhas até formar quadradinhos que depois enrolava com plástico e durex. Entregava essas “pílulas” à mãe quando ela o visitava. Em casa, o pai datilografava tudo. “Em câmera lenta” foi lançado em 1977 e proibido pela ditadura. O autor voltou para a cadeia.