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‘Quando falo com outra pessoa, o rosto dela se contorce’, diz caminhoneiro em entrevista sobre ‘síndrome da face demoníaca’
Victor Sharrah, de 59 anos, uma das 100 pessoas que sofre da síndrome, conta também sobre o tratamento ao qual é submetido

A maneira como nossos olhos veem o mundo influencia diretamente na percepção da realidade. Para Victor Sharrah, de 59 anos e morador do Tennessee, nos Estados Unidos, a aparência do rosto de outras pessoas o fizeram questionar se não teria ido para um "mundo de demônios". Diagnosticado com prosopometamorfopsia (PMO, na sigla em inglês), também conhecida como "síndrome da face demoníaca", ele vê faces com a boca esticada, orelhas pontiagudas apontadas para cima, os olhos puxados e as narinas dilatadas.
Ainda que já existam estudos em andamento sobre o distúrbio, em todo o mundo menos de 100 casos foram diagnosticados. De acordo com especialistas da Dartmouth College, nos Estados Unidos, um fator diferencial para conseguir identificar o PMO é que a deformação visual não é acompanhada por crenças delirantes.
Embora o gatilho exato para o surgimento não tenha sido determinado, especialistas acreditam que ocorre por uma disfunção na rede cerebral responsável pelo processamento facial. Alguns casos de PMO foram associados a traumatismo cranioencefálico, acidente vascular cerebral, epilepsia ou enxaquecas, enquanto outros apresentam a condição sem alterações estruturais evidentes em seus cérebros.
O primeiro relato do caso de Victor foi publicado no último dia 23 na renomada revista científica The Lancet. Em entrevista ao GLOBO, o caminhoneiro narra as suas experiências nos três anos em que convive com as distorções visuais causadas pelo distúrbio e como isso impactou a sua forma de viver.
Como é viver com prosopometamorfopsia (PMO)?
É definitivamente diferente. É algo que você precisa se acostumar.
Como foi sua primeira experiência?
Foi há uns 3 anos, eu tinha acabado de acordar, tinha um colega de quarto. Ele saiu do banheiro e foi para o quarto, naquele momento eu tinha visto apenas um lado do seu rosto. E parecia que tinha algo errado. Alguns minutos depois, depois a namorada dele entrou e eu vi a distorção no rosto dela. Eu não conseguia entender o que eu estava vendo, sabe? Achei que tinha acordado em um tipo de mundo demoníaco. Essa é a única descrição que consegui encontrar. Não sou particularmente religioso. Foi muito traumático.
Então, depois sai para andar com os cachorros e os rostos de todo mundo parecia com aquilo (dando a impressão de serem demônios). Aquilo realmente me deixou apavorado.
Como são os rostos que você vê?
Até pensei se o criador de Star Trek, Gene Roddenberry, não teria PMO. O que vejo é muito similar a um personagem de Star Trek. Uma coisa para lembrar é que olhando as imagens feitas por mim e Antonio (pesquisador), é que aquela face não está se movendo. Quando estou falando com outra pessoa, o rosto dela tende a se mover, se contorcer, expressar reações etc. É bem diferente de só olhar para uma foto.
Então, para além das imagens criadas pelo estudo, é ainda mais estranho para você?
É, foi bem difícil nos primeiros anos. Ainda bem que eu tinha os óculos, que a Catherine (pesquisadora), para conseguir me adaptar. Eles conseguiram corrigir o problema.
Pode me falar mais um pouco sobre seu acidente, que poderia ter originado o distúrbio?
Fui um caminhoneiro por 22 anos. Uma das partes do meu trailer me acertou em cheio debaixo do queixo, isso me fez cair de costas e bater a cabeça no concreto. Fiquei inconsciente menos de 30 minutos, eu acho. Quando voltei a mim liguei para o meu chefe, ele me socorreu e me levou até o hospital.
Como é viver em um mundo onde todo mundo tem um rosto distorcido? Como você se sente? Agora é três anos depois, mas no início foi bem traumatizante. Cheguei a cogitar me suicidar. Se a pesquisadora que me ajudou não tivesse me contatado... ela me disse que sabia o que estava acontecendo, então me explicou sobre o PMO. Nós fizemos muito trabalho com cores, ela me deu diversas lentes e eu testei todas no estacionamento do supermercado até conseguir encontrar a ideal. A partir disso, ela me deu os óculos.
O óculos faz parte do tratamento?
Sim, foi feito um trabalho com cores e as distorções foram intensificadas. A partir disso foi descoberto o verde as aliava. Alguns tons de verde conseguem melhorar completamente as distorções e eu consigo ver os rostos das pessoas de forma normal.
Você usa os óculos o tempo todo ou só quando sai de casa?
Uso principalmente quando vou para lugares com muitas pessoas. Também uso ocasionalmente.
Qual é o sentimento de viver com esta condição?
O que ajuda é o fato de eu não ver as distorções em telas. Isso me ajudou a acreditar no que a pesquisadora me explicou. Originalmente, a teoria era da razão para isso ser cor natural versus cor artificial. Mas, com mais pesquisa, tem outra perspectiva, pela qual eu até acredito ser a resposta certa, de ser algo no âmbito do tridimensional versus o bidimensional. Nós fizemos testes com realidade virtual e eu também enxerguei distorções, por exemplo. Se eu vou para o Walmart e sei que vai ter muitas pessoas, eu coloco meus óculos ou algo assim. Mesmo sabendo a causa da distorção, pode ser sufocante estar em uma multidão.
Existe algo que você deixou de fazer?
Eu costumava sair mais antes. Sair para dançar, ir à clubes, algo do tipo. Mas agora eu não faço mais isso como antigamente, fico mais em casa agora. Só na TV, ou em telas em geral que eu consigo ver as pessoas normalmente.
Como foi explicar para a sua família e pessoas próximas sobre o que você estava vendo?
Foi difícil. Catherine fez uma "foto" do que eu via, antes da minha participação no estudo da Universidade de Dartmouth. Então, pude mostrar para as pessoas ao longo dos anos o que eu vejo. Sem essa pesquisadora que me ajudou eu teria sido tratado por psicose. Mas o meu objetivo primário é por saber que algumas pessoas foram internadas, ou tratadas com medicamentos para psicose, quero ajudá-las. Falo sobre o que vivi para ajudar a evitar que outras pessoas passem pelo trauma que eu passei antes de ser diagnosticado.
As pessoas têm sido compreensivas com a sua condição ou você já cruzou o caminho com alguém que não acreditou no que você disse?
Um pouco de tudo. Algumas pessoas foram compreensivas, outras acharam que eu tinha enlouquecido.
Com o que você trabalha agora?
Atualmente não estou trabalhando porque tive meu ombro operado faz pouco tempo. Dirigi caminhões por 22 anos, mas também tenho um diploma em culinária. Então, tenho trabalhado na cozinha nos últimos anos.
Você vive com a sua família? Seus amigos te ajudam?
Tenho quatro filhos, mas não moro com eles. Costumo falar mais com o meu mais novo, toda semana. Ele tem me apoiado bastante. Mas vivo com um colega de quarto que tem duas crianças pequenas, uma de 1 ano e a outra de 4 anos. Nós fazemos piadas sobre isso (as distorções). No outro dia eu estava conversando com o filho de 4 anos do meu colega de quarto e brinquei com ele dizendo que o via pelo que ele realmente era. "Seu demôniozinho!", disse para ele.
Tem alguma história interessante sobre algo que você viveu por conta das distorções?
Na época do primeiro par de óculos não via a minha filha há anos e ainda não tinha conhecido minha neta. Quando ganhei esses óculos foi bem a tempo de conhecer minha neta pela primeira vez e pude vê-las sem distorções. Isso foi espetacular.
Foi sugerido pelos médicos algum tipo de intervenção cirúrgica?
Bem, eles estão apenas chegando na ponta do iceberg sobre o que é o PMO. Então não existe algum tratamento cirúrgico por enquanto.
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