Internacional
Trinta anos depois de um genocídio em Ruanda, as lembranças dolorosas são profundas
Em abril de 1994, milicianos saqueadores hutus deram início a uma matança de cerca de 800 mil pessoas, a maioria da etnia tutsi
Quando os milicianos saqueadores chegaram à sua porta naquela manhã de abril de 1994, Florence Mukantaganda sabia que não havia para onde fugir. Aquele era apenas o terceiro dos 100 dias de um genocídio devastador que aconteceria em Ruanda, quando os milicianos saquearam as ruas e as casas das pessoas em um derramamento de sangue que transformou para sempre a vida na nação da África Central.
Quando os homens entraram em sua casa, Mukantaganda disse que seu marido, um pregador, orou por ela e por seus dois filhos pequenos e lhe disse furtivamente onde havia escondido algum dinheiro para o caso de ela sobreviver. Em seguida, declarou suas últimas palavras antes de ser cortado até a morte com uma enxada.
— Ele me disse: “Quando eles vierem atrás de você, você tem que ser forte, tem que morrer forte” — lembrou Mukantaganda, de 53 anos, em uma manhã recente em sua casa em Kabuga, uma pequena cidade a cerca de 16 quilômetros a leste de Kigali, a capital de Ruanda. — Não havia nada que pudéssemos fazer a não ser esperar nossa hora de morrer.
A agonia daqueles dias angustiantes se fez presente para muitos neste domingo, quando Ruanda comemora o 30º aniversário do genocídio, no qual extremistas da maioria étnica hutu do país mataram cerca de 800 mil pessoas — a maioria de etnia tutsi — usando facões, porretes e armas.
— Hoje, nossos corações estão cheios de tristeza e gratidão em igual medida — disse o presidente Paul Kagame neste domingo, em uma cerimônia em uma arena coberta. — Nós nos lembramos de nossos mortos e também somos gratos pelo que Ruanda se tornou.
Representantes de instituições regionais e globais como a União Africana, a União Europeia e as Nações Unidas estavam presentes na cerimônia, bem como delegações ministeriais e líderes atuais e antigos de cerca de 60 nações. Entre eles, Bill Clinton, que era presidente dos Estados Unidos na época do genocídio e reconheceu o fracasso de Washington em deter rapidamente o derramamento de sangue.
O presidente Emmanuel Macron, da França, que não compareceu ao evento, mas que nos últimos anos falou sobre o fracasso da França em deter o genocídio, enviou um vídeo dizendo que seu país e seus aliados ocidentais e africanos não demonstraram disposição de deter o massacre.
O evento de um dia inteiro em Kigali inclui o acendimento de uma chama de lembrança, uma caminhada, uma vigília noturna e uma cerimônia de colocação de coroa de flores no Memorial do Genocídio de Kigali, que é o local de descanso final dos restos mortais de mais de 250 mil vítimas do massacre.
Para muitos, o evento foi um lembrete do horror que começou depois que um avião que transportava os presidentes de Ruanda e Burundi foi abatido. Embora os responsáveis pelo acidente nunca tenham sido identificados, o governo liderado pelos hutus atribuiu a culpa aos rebeldes tutsis e imediatamente iniciou uma campanha de matança sistemática. Os rebeldes, liderados por Kagame, disseram que os extremistas hutus derrubaram o avião como pretexto para um genocídio.
Em entrevistas com uma dúzia de sobreviventes em Ruanda nos dois dias que antecederam a comemoração neste domingo, muitos falaram sobre o paroxismo de violência que tomou conta dessa nação exuberante e sem litoral. Falaram sobre os horrores que suportaram por mais de três meses, quando suas cidades e vilarejos se tornaram gigantescos campos de extermínio. Muitos se lembraram de como fugiram de suas casas e se esconderam em arbustos e florestas, igrejas e mesquitas, em caixões e armários, apenas para serem encontrados e forçados a fugir novamente.
Um homem, Hussein Twagiramungu, falou sobre ouvir sua mãe chamando seu nome enquanto seus assassinos a matavam a pauladas. Velene Kankwanzi disse que sobreviveu deitada, fingindo estar morta, entre parentes mortos por milicianos. Ela disse ter ouvido os homens comentando que deveriam fazer uma pausa porque suas "mãos estavam cansadas" de tanto matar. Rashid Bagabo lembrou como suas próprias mãos ficaram dormentes enquanto ele e outros cinco enterravam cerca de 300 pessoas.
Mukantaganda, a mulher cujo marido foi morto, falou sobre como os vizinhos, amigos e familiares se voltaram uns contra os outros.
Quando a carnificina começou, um amigo hutu próximo a Mukantaganda que era líder do coral de sua igreja sugeriu que ela e sua família se trancassem em casa para que, quando os milicianos chegassem, pensassem que eles tinham ido embora. Mas, segundo ela, o homem foi e informou aos assassinos onde eles estavam.
— Já se passaram 30 anos e ainda estou aprendendo a perdoar — afirmou ela, chorando em uma tarde recente, enquanto girava a aliança de ouro em seu dedo que, segundo ela, seu marido havia lhe dado.
Mukantaganda perdeu outros oito membros da família, incluindo seus pais, no genocídio.
O evento de comemoração em Kigali neste domingo também é uma prova do poder de Kagame, cujo partido governista Frente Patriótica de Ruanda pôs fim ao genocídio. Kagame lidera Ruanda desde então e transformou sua nação de sinônimo de violência genocida em história de sucesso na África.
Desde 1994, essa nação montanhosa com cerca de 14 milhões de habitantes cresceu economicamente, reduziu significativamente a mortalidade materna e a pobreza e melhorou o acesso à educação e à saúde. Ruanda também se tornou um importante destino turístico e de conferências e, todos os anos, sedia uma cerimônia de nomeação de gorilas repleta de estrelas que atrai pessoas como Bill Gates, fundador e filantropo da Microsoft, e Idris Elba, ator britânico.
Mas apesar de ter tirado sua nação da beira do abismo, Kagame tornou-se cada vez mais autoritário, prendendo figuras da oposição, limitando a liberdade de imprensa e atacando os críticos no país e no exterior. Kagame, 66 anos, está concorrendo às eleições deste ano e espera-se que ganhe outro mandato de sete anos.
Ruanda também foi acusada de apoiar as forças rebeldes na vizinha República Democrática do Congo e de saquear as riquezas minerais nas regiões orientais do país — acusações que o governo de Kagame nega.
Neste domingo, o presidente agradeceu ao Congo por ter acolhido refugiados ruandeses durante o genocídio de 1994. Mas também acusou o país de fornecer "apoio estatal" aos remanescentes dos rebeldes hutus, cujas intenções eram "se reorganizar e retornar para completar o genocídio".
— Nosso povo nunca, e eu quero dizer nunca, será deixado para morrer novamente — prometeu Kagame ao final de seu discurso de meia hora.
Para algumas pessoas em Ruanda, a comemoração solene neste domingo também marcou um dia em que a humanidade triunfou sobre o ódio.
Isso é verdade para Mariane Mukaneza, uma mãe de quatro filhos cujo marido foi morto na cidade de Rubavu, no oeste do país. Ao fugir, Mukaneza disse que recebeu abrigo de Yussuf Ntamuhanga, um hutu étnico, que ficou conhecido por esconder tutsis e ajudá-los a atravessar para o Congo.
Ntamuhanga é muçulmano e, como muitos da comunidade muçulmana de Ruanda, não participou do derramamento de sangue. No início do genocídio, os muçulmanos eram marginalizados social e economicamente em Ruanda, disse Salim Hitimana, o mufti (acadêmico islâmico a quem é reconhecida a capacidade de interpretar a lei islâmica) de Ruanda. Como tal, seus líderes não eram tão próximos do establishment político, afirmou, e desde o início denunciaram a violência e salvaram os que fugiam em suas casas e mesquitas.
— Ele é minha família e minha esperança — disse Mukaneza,de 68 anos, sobre Ntamuhanga em uma tarde recente, quando os dois se sentaram um em frente ao outro durante uma entrevista. — Ele não se importava com minha religião ou com minha origem.
Ntamuhanga, de 65 anos, que estava jejuando durante o mês sagrado do Ramadã, disse que ajudou pessoalmente a resgatar mais de três dúzias de pessoas.
— Meu pai me criou com amor e compaixão, e o Islã também reforçou essa mensagem — comentou.
Por enquanto, Mukantaganda, traída por um amigo próximo, afirma estar aprendendo a se curar. Mas as lembranças daqueles dias sangrentos são constantes, segundo ela: lugares na cidade que provocam memórias de assassinatos; os corpos que continuam a ser exumados; e até mesmo a chuva caindo em seu telhado em uma tarde recente, lembrando-a de dias chuvosos semelhantes em abril de 1994.
— Parece que tudo aconteceu ontem — concluiu.
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