Internacional
Guerra em Gaza, 6 meses: Conflito abalou capacidades do Hamas, mas grupo segue longe de ser 'erradicado'
Estimativas apontam que cerca de 30% dos combatentes foram mortos; principais lideranças seguem no comando da organização, que vem ganhando adeptos na Cisjordânia
Horas depois dos maiores ataques contra Israel em décadas, que deixaram 1.139 mortos, o premier Benjamin Netanyahu fez um dos mais contundentes discursos de seus muitos anos no poder. Ali, prometeu vingança contra os responsáveis pelo massacre, e disse que iria “erradicar” o grupo terrorista Hamas, protagonista dos assassinatos e dos sequestros de mais de 200 pessoas.
— Vamos destruí-los e vamos nos vingar por esse dia obscuro que eles impuseram ao Estado de Israel e seus cidadãos — disse Netanyahu, no dia 7 de outubro do ano passado. — Todos os lugares onde o Hamas está baseado, escondido e operando, naquela cidade perversa, nós vamos transformá-la em ruínas. E digo aos residentes de Gaza: saiam agora, porque vamos operar à força em todos os lugares.
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Passados seis meses de guerra, estimativas mostram que 62% das casas, 84% das infraestrutura de saúde, e quase 100% das instituições de ensino na Faixa de Gaza estão em ruínas, e o custo da reconstrução foi estimado pelo Banco Mundial em US$ 18,5 bilhões (R$ 93,49 bilhões), equivalente a 97% do PIB combinado de Gaza e da Cisjordânia em 2022. Números do Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, revelam 33.091 mortos, sendo que 13 mil deles menores de idade, 75 mil feridos e 8 mil desaparecidos.
— Em todas as ocasiões em que Israel atacou militarmente a Faixa de Gaza, a justificativa foi a necessidade de "exterminar" ou "debilitar" o Hamas. No entanto, em todas essas ocasiões, o alvo real e preferencial foi a população civil de Gaza, que pouco ou nada tem a ver com as ambições do Hamas — disse ao GLOBO Isabela Agostinelli, professora de Relações Internacionais da PUC-SP. — Mas, o argumento contraterrorista é forte e apelativo, e transforma a população inteira de Gaza em apoiadores do Hamas.
Agora, uma pergunta segue em aberto: até que ponto a promessa de Netanyahu de “erradicar” o Hamas foi cumprida? A resposta pode variar bastante, dependendo de qual lado venha.
A começar pela ampla rede de túneis do grupo, uma arma crucial do Hamas em Gaza. Israel tem anunciado recorrentes descobertas de passagens em locais como escolas, cemitérios e escritórios da agência da ONU para os palestinos, a UNRWA. No final do ano passado, a principal justificativa para o cerco ao hospital al-Shifa, na Cidade de Gaza, era que a instalação médica servia como “base” de um centro de operações do Hamas, onde túneis serviam como escritórios, depósitos e rotas de fuga.
— Os terroristas vinham aqui para comandar suas operações — disse, em vídeo do dia 22 de novembro, o porta-voz do Exército, Daniel Hagari, caminhando pelo que parecia ser um túnel sob o al-Shifa.
A extensão total dos túneis era desconhecida dos próprios israelenses, e algumas estruturas, usadas também para abrigar algumas dezenas de reféns capturados no dia 7 de outubro, surpreenderam os militares. Em determinados locais, era possível passar com motocicletas e até veículos maiores.
Entre a descoberta dos túneis e sua destruição completa — uma promessa de Netanyahu desde a década passada — há um longo caminho. Em janeiro, estimativa publicada pelo Wall Street Journal, citando integrantes dos governos de EUA e Israel, apontava que 80% da rede de túneis estava intacta. Apesar de existirem unidades especializadas na demolição das estruturas, sua extensão e a presença de reféns ali são fatores complicadores. Diante de operações terrestres mais amplas, analistas afirmam que os túneis ainda servem de abrigo para combatentes em regiões como o norte de Gaza.
Em termos logísticos, a operação militar parece ter afetado a capacidade do Hamas de lançar mísseis: números do aplicativo Rocket Alert, que avisa a população sobre ataques, mostram que 11.234 foguetes foram disparados de Gaza desde o dia 7 de outubro, a maior parte no início do conflito. No último mês, o aplicativo confirmou 362 disparos. Os equipamentos são em grande parte do tipo Qassam, que pode ser montado com tubos de metal e motores simples, e funciona com combustível convencional. Israel alega que o sistema de defesa Domo de Ferro é capaz de interceptar até 90% dos disparos.
Não há estimativas sobre as armas usadas nos combates em terra, embora Israel tenha anunciado apreensões de fuzis e explosivos em locais como centros médicos, algo que não foi confirmado de maneira independente. No passado, o Hamas dependia do envio de armamentos de aliados como o Hezbollah e o Irã, de traficantes de armas e da fabricação caseira dos equipamentos.
Outro ponto importante é sobre os combatentes do Hamas mortos de outubro até aqui. Os números, mesmo entre os israelenses, são desencontrados. Em janeiro, Netanyahu afirmou que Israel havia eliminado “dois terços” dos militantes do grupo palestino — segundo estimativas, o Hamas teria à disposição cerca de 30 mil homens antes da guerra. No mesmo mês, a embaixada de Israel no Reino Unido disse que os mortos seriam “entre 10 e 12 mil”, número similar ao publicado pelo Times of Israel em fevereiro, citando fontes militares.
Ao Wall Street Journal, fontes na inteligência dos EUA afirmaram que o número seria mais modesto: entre 20% e 30% dos combatentes teriam morrido, o que corresponde a até nove mil pessoas. Representantes dos serviços médicos em Gaza dizem que 70% dos 33 mil mortos no conflito são “mulheres e menores de idade”. Os números, não importa o lado, não podem ser confirmados de maneira independente.
— A guerra afeta o Hamas, evidentemente, no que concerne à sua capacidade militar em termos de quantidade de armas disponíveis, mobilidade no território, entre outros. Porém, é importante ressaltar que aqueles mais atingidos pelas bombas, pelo "pós-bombardeio" e pelo cercamento total de Gaza são os cidadãos comuns, inclusive mulheres e crianças — ressaltou Isabela Agostinelli.
No caso dos comandantes, os assassinatos são usados como ferramentas de propaganda por um lado, e de incitação à vingança pelo outro. Um ataque com um drone em Beirute, no Líbano, matou o vice-líder da ala política do grupo, Saleh al-Arouri, em janeiro, além de outras cinco pessoas. Em março, a vítima foi Marwan Issa, vice-comandante das Brigadas Qassam, que foi morto em Gaza, apesar dos representantes do Hamas não terem confirmado o ataque inicialmente.
No passado, Israel matou vários altos comandantes do Hamas, incluindo o fundador do grupo, Ahmed Yassin, e um ex-líder, Abdel Aziz al-Rantisi. Mas alguns nomes que parecem fora de alcance: a começar pelo atual chefe do grupo, Yahya Sinwar. Em janeiro, o jornal Israel Hayom disse que os militares sabem onde ele está, mas não podem atacá-lo porque estaria "cercado por muitos reféns". Mohammed Deif, chefe da ala militar do grupo, é outro "alvo" de grande importância, além de nomes da ala política, como Ismail Haniyeh, que desde 2017 vive no Catar.
Ao se falar sobre a promessa de erradicar o Hamas é necessário considerar que o grupo não é apenas uma milícia armada "simples", mas sim um movimento com uma cartilha política e que vem conquistando apoio fora de Gaza. Na Cisjordânia, onde as incursões israelenses têm se tornado mais frequentes desde o início da guerra, e onde 457 pessoas morreram, bandeiras do grupo são cada vez mais comuns.
Uma pesquisa do final de dezembro revelou que 44% dos entrevistados na Cisjordânia dizem apoiar o Hamas, contra apenas 12% em setembro. Na Faixa de Gaza, o apoio ao grupo é de 42%. Ao mesmo tempo, 60% das pessoas ouvidas defendem a dissolução da Autoridade Nacional Palestina, que comanda a Cisjordânia e é vista como central na construção de um futuro Estado palestino.
— O apoio ao Hamas na Cisjordânia não é um fenômeno pontual, mas sim decorrência de anos da incompetência e acusações de corrupção da Autoridade Palestina, que tem mais se articulado com o poder ocupante (Israel) do que de fato representado os interesses de libertação nacional dos palestinos. A liderança palestina está fragmentada, sem uma alternativa à estratégia israelense de dividir e governar, e portanto sem uma unidade nacional capaz de enfrentar politicamente a ocupação israelense — concluiu Agostinelli.
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