Internacional
Apesar de cortes, Milei chega a 100 dias com mais de 50% de apoio
Analistas preveem que próximos meses serão desafiadores e condicionam futuro do governo à tolerância dos argentinos à crise
Passados os primeiros 100 dias de governo, completados semana passada pelo presidente Javier Milei, a Argentina, apontaram analistas políticos e econômicos ouvidos pelo GLOBO, ainda vive um período de incertezas e tem pela frente meses desafiadores. Na área econômica, Milei conseguiu alguns resultados positivos, entre eles dois meses consecutivos de superávit fiscal, o que implica que, pela primeira vez em 12 anos, o Estado argentino gastou menos do que arrecadou. Mas, se a serra elétrica do presidente teve impacto expressivo nas contas, a recessão em que mergulhou o país está empobrecendo a classe média em ritmo acelerado. A grande pergunta que paira sobre o país é até quando a sociedade tolerará o ajuste brutal implementado pelo governo sem questionar os métodos do presidente e, consequentemente, deixar de apoiá-lo.
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Janaína Figueiredo: Um silêncio insustentável
Pesquisas recentes mostram que o chefe de Estado preserva um importante nível de respaldo social, inclusive em setores da sociedade que estão sofrendo na pele as consequências de um ajuste que a grande maioria dos analistas considera inevitável — embora alguns discordem de sua intensidade. Segundo dados da consultoria Explanans, uma das que mais se aproximaram do resultado do segundo turno presidencial do ano passado, se houvesse uma eleição hoje Milei seria eleito com 51,5% dos votos — um pouco abaixo dos 56% de 2023. Em províncias como Córdoba e Mendoza, o apoio ao presidente supera 60%.
Além do superávit fiscal, o governo conseguiu reduzir a taxa de inflação, que chegou a 25% em dezembro passado e caiu para 13,2% em fevereiro. Outro dado que entusiasmou o setor privado e o mercado foi a recuperação do Banco Central, que tinha reservas negativas em US$ 10 bilhões (R$ 50 bi) no final de 2023 e atualmente conseguiu reduzir o vermelho para US$ 2,5 bilhões (R$ 12,5 bi).
— O governo está mostrando convicções que agradam a investidores e são sinalizações positivas para o mercado. A pergunta é se as medidas são sustentáveis — afirma o economista Andrés Borenstein, da Econviews.
Liquidificador
Além da serra elétrica, Milei aplica o que os economistas chamam de liquidificador: salários de servidores, aposentadorias, pensões e ajudas sociais aumentaram menos do que a inflação, ou seja, no jargão dos economistas, foram liquidificados (leia-se, os que recebem esses benefícios perderam poder aquisitivo).
— Milei está buscando um Estado mais austero, e isso é positivo. O que preocupa é o impacto do ajuste e de métodos como o liquidificador na classe média. O futuro dependerá, em grande medida, do apoio da sociedade ao programa do presidente — frisa Borenstein, que ressalta o aumento de consultas que tem recebido por parte de investidores estrangeiros.
Milei voltou a tornar a Argentina um país que desperta interesse no mundo. Hoje, o entusiasmo externo convive com um elevado grau de resiliência interna. A mesma pesquisa da Explanans mostrou que, para 59,8% dos entrevistados, a situação econômica atual é pior da que assolava o país antes da mudança de governo — mas essas mesmas pessoas afirmam que a culpa não é do presidente. Só 28,7% dos entrevistados responsabilizaram Milei pela estagflação — combinação de recessão com inflação.
— O segundo trimestre do ano vai definir o futuro do governo. Se Milei conseguir aprovar reformas no Congresso, manter o equilíbrio fiscal, negociar com os governadores e manter o clima de tolerância na sociedade, poderemos dizer que o governo está dando certo — explica Ignacio Labaqui, professor da Universidade Católica e consultor privado.
Para ele, três elementos são essenciais para entender o apoio social a Milei: não há oposição efetiva, já que a classe política ainda está desnorteada por não conseguir entender o presidente; os escândalos de corrupção no peronismo e kirchnerismo o fortalecem ao manchar as posições mais à esquerda do espectro político; e sociedade e políticos acabam torcendo pelo sucesso do governo pelo medo de que seu fracasso aprofunde a crise.
Com o primeiro trimestre de 2024 chegando ao fim, Milei não tem reformas para apresentar a seus eleitores. O projeto de Lei Ônibus morreu na praia e agora o governo negocia uma nova proposta, mais limitada. O texto, ainda em discussões internas, prevê poucas privatizações — entre elas a da companhia aérea Aerolíneas Argentinas — e modificações na fórmula de cálculo das aposentadorias. As reformas fiscais seriam incluídas num projeto separado, e ainda precisam ser negociadas com as províncias, em meio a embates de Milei com alguns governadores, inclusive da chamada oposição dialoguista.
O presidente enfrenta, ainda, resistências ao Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) aprovado em dezembro e rechaçado recentemente pelo Senado. Para ser derrubado, o DNU — que modificou diversas regulações internas do país em matéria de normas trabalhistas e contratos de aluguel — precisa ser rejeitado também na Câmara. Em paralelo, foram apresentados vários recursos contra o DNU na Justiça, e alguns deles, por exemplo contra as modificações de normas que regem o mercado de trabalho, suspenderam sua implementação em temas específicos.
— O governo está entendendo que precisará negociar mais. É um processo de construção lento, comandado por um grupo sem experiência política e com o poder concentrado em pouquíssimas mãos — diz o analista Carlos Fara.
De fato, segundo fontes da Casa Rosada, o círculo de confiança de Milei está integrado apenas por sua irmã, Karina Milei, secretária-geral da Presidência; o chefe de Gabinete, Nicolás Posse; e o assessor presidencial Santiago Caputo, estrategista da campanha do presidente. Decisões de peso e outras não tão relevantes devem, sempre, passar pelo círculo de poder liderado por Milei.
— A sorte de Milei é não ter uma oposição forte. O peronismo e o kirchnerismo estão desgastados, e a aliança de Mauricio Macri, rachada — afirma Fara.
O grande ponto de interrogação dos analistas é o clima de mal-estar social e suas consequências. Muitos argentinos de classe média estão deixando de pagar impostos, tirando filhos de escolas particulares e cancelando planos de saúde. Esse contexto, no médio prazo, implicará perda de apoio social e, em paralelo, mais pressão sobre o Estado.
— O governo melhorou indicadores financeiros e está equilibrando o BC, mas, cuidado, porque o superávit fiscal foi possível pela suspensão de pagamentos e obras públicas, entre outras medidas. No fundo, é uma ficção — opina o economista Guillermo Oglietti, pesquisador do Centro Estratégico Latino-americano de Geopolítica, o Celag.
Classe média preocupa
Na província de Córdoba, onde vive, o governo provincial permitiu o pagamento das contas de luz em três parcelas.
— O fim abrupto dos subsídios, entre outras medidas, está castigando a classe média de uma maneira como poucas vezes vimos. Ninguém defende o governo anterior, que foi péssimo, mas hoje a situação é muito difícil — disse Oglietti.
Segundo versões divulgadas pelo site La Política On Line, Milei está preocupado com a pressão sobre a classe média, sobretudo em matéria de inflação no preço dos alimentos. A dificuldade de conter os aumentos no mercado interno teria provocado, de acordo com as versões, as primeiras discussões fortes entre o presidente e o ministro da Economia, Luis Caputo. Milei já enfrentou uma greve geral, no fim de janeiro, e os protestos vêm se multiplicando.
O presidente sobreviveu aos primeiros 100 dias sem sobressaltos, mas também sem vitórias. Os próximos meses determinarão se o primeiro presidente de ultradireita conseguirá construir governabilidade e começar a tirar o país do buraco em que está metido.
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